Não tenho dúvidas de que há minorias politicamente corretas e minorias politicamente incorretas, isto é, há aquelas minorias cujos direitos devem ser protegidos a todo custo, e as minorias cujos direitos não valem um tostão. Eu pertenço a uma minoria cujos direitos devem ser trucidados. Explico-me.
Minha faculdade está em greve há um mês. Os alunos pleiteam que a grade curricular seja mudada, para que 60 créditos sejam livres, ou seja, para que possam fazer quaisquer matérias que queiram na universidade, independemente de qualquer ligação com o Direito. Também há um problema com relação às matrículas, pois como há falta de professores, não há vagas para todo mundo, então as pessoas acabam não conseguindo se matricular naquilo que querem. Eu vivi esse problema quando fiz o curso de Letras: como eu não estava disposta a dormir ao relento para garantir uma vaga em Filologia Românica, que contava com um único professor, acabei tendo que cursar matérias que a mim eram inúteis, como por exemplo Cultura do Povo Judeu, em que a professora falava do rito da circuncisão.
São os percalços das universidades públicas no Brasil, com os quais os alunos têm que conviver ao longo de sua carreira acadêmica. Apesar de reconhecer as dificuldades sou totalmente contra a greve de alunos, por uma questão de fundo. Antes de exigirmos qualquer coisa devemos estar plenamente conscientes de que gozamos do imenso privilégio de termos acesso ao estudo superior gratuito e por isso seria de bom tom se cumpríssemosnossas obrigações enquanto alunos, o que inclui comparecimento às aulas, dedicação, etc. Os meus colegas queixam-se do método de ensino ultrapassado, da leitura de códigos, da falta de uma formação multidisciplinar, etc. Mas se houvesse maior participação concreta dos alunos no dia a dia da faculdade, se ele estivessem presentes discutindo com os professores, colocando-lhes perguntas, dedicando-se aos estudos, tenho certeza que o nível das aulas subiria muito, porque nossos mestres sentiriam-se desafiados e teriam que fazer um esforço maior. Reclamar da qualidade do ensino comportando-se como estudantes ausentes para mim é uma leviandade, para não dizer desfaçatez.
Uso essas palavras pesadas porque a maioria dos que estão insuflando a greve, que têm tocado bumbo pelos corredores da faculdade para inviabilizar qualquer aula, que colocaram cadeiras de pernas para o ar no fundo das salas, cadeiras essas que são patrimÕnio público, são pessoas que aparecem só no dia da prova, mostrando ser tão burocráticos, tão focados no canudo do diploma quanto os professores que eles acusam de ser focados no código. Há duas semanas estávamos falando dos privilégios da Administração em juízo quando a turba entrou sem pedir licença, cantando, tocando bateria e rodeando os alunos como eu que teimavam em continuar, sentados, com a vã esperança de que os grevistas percebessem que queríamos continuar a ter aulas e éramos contra a interrupção da aula. Infelizmente, eles venceram-me pelo cansaço, ou melhor, pelo barulho ensurdecedor da escola de samba improvisada. Quando eu me levantei para sair,exclamei: grande exemplo de democracia que vocês estão dando, impondo a greve a quem não quer fazer greve!
Agora fica claro o porquê de eu identificar-me como pertencentea uma minoria politicamente incorreta. Faço parte de um grupo que não quer fazer mais nada do que cumprir a lei, afinal estou em uma Faculdade de Direito. Não tenho interesse em política estudantil, não concordo com a pauta dereivindicações pelas razões expostas acima. Quero simplesmente ter aulas, às quais ganhei o privilégio por ter passado em um vestibular que teve critérios objetivos. Não tenho interesse em revoluções obviamente por causa da minha idade, não tenho mais os hormônios necessários para entusiasmar-me com causas, mas também acho queo melhor que posso fazer para o Brasil como retribuição por terestudado cinco anos de graçaé ser uma boa profissional que não engane ninguém por malandragem e que não faça ninguém perder dinheiro por incompetência. Sou uma conservadora, por isso acho que a tarefa precípua deum cidadão em prol da sociedade é cumprir suas obrigações. Fazer greve não vai resolver os problemas do ensino jurídico no Brasil, ao contrário exacerba-os: estudantes da lei que descumprem seu dever de estudar, pagos pelo Estado que são, serão os futuros operadores de um direito no Brasil em que a prática da justiça fica sempre muito aquém do blá blá blá colocado na Constituição, nos Códigos.Em minha opinião, greve de alunos privilegiados, que têm outros meios de manifestar sua opinião sobre reforma no ensino, não passa de birra de adolescentes que não estão acostumados que lhes sejam impostos limites, porque a eles tudo é dado.
Prezados leitores, não sou paladina da moralidade, apenas espanta-me a inconsistência entre a teoria e a prática de pessoas que têm, ou que deveriam ter, nível intelectual para ver que democracia não é a ditadura da maioria, que greve não pode ser algo imposto aos que não querem aderir, e que não é porque uma minoria é politicamente incorreta e defende a ordem, que ela não tem direito de ser protegida como qualquer das minorias que são mais bemquistas no mercado das ideias. Mesmo porque a tal da maioria que justificaria a greve foi conseguida em assembleia na qual a votação era aberta e nos debates as pessoas que eram contra a paralisação manifestavam-se timidamente ante a maioria dos grevistas.
Esse pequeno episódio pessoal, que relato a vocês por achar que ele tem alguma relevância para terceiros, mostra que temos um legado ruim da ditadura, um gosto amargo na boca das elites intelectuais do Brasil para quem todo apelo à lei e à ordem é necessariamente autoritário, para quem o revoltar-se contra o status quo é necessariamente bom. Nossa democracia ainda tem um quê na mera reivindicação cacofônica de direitos sem que haja uma linha norteadora para nossas escolhas, sem que tenhamos uma exata noção das consequências, tanto boas quanto ruins, das opções feitas. Em outras palavras, não dá para ter tudo na vida, ou como dizem os economistas, não há almoço grátis. É bom que a nossa juventude dourada saiba que para ter educação superior gratuita é preciso abdicar de certas coisas, entre as quais o excesso de reivindicações em um país em que há meninas e meninos se prostituindo e que dariam tudo para ter acesso a um mero curso de corte e costura.
Estou correndo o risco de perder meu semestre e não me formar por conta dessas reivindicações. É uma perda para o Estado, que paga os professores para nos darem aulas, e para os alunos, que têm sua vida perturbada pela postergação da graduação. Torço para que o clima de torcida de futebol deixe de prevalecer e que as minorias como eu que querem simplesmente estudar tenham um pequeno canto onde possam levar sua vida comezinha, feita de sonhos pequeno-burgueses de ascensão pelo trabalho, longe das grandes ideias dos paladinos das reformas de base.