Estamos assistindo pela TV aos desdobramentos do terremoto que atingiu o Japão no dia 10 de março, o perigo de radiação nuclear vazar da usina de Fukushima. A princípio foi mais um desastre natural com o qual os japoneses estão acostumados e para o qual estão preparados. Afinal, eles sempre se valeram da tecnologia para resolver seus problemas.
Suas construções balançam, mas não caem, seus trens-bala são pontualíssimos e permitem que milhares de pessoas cheguem ao trabalho no horário. Seus sistemas de gestão, just-in-time e lean production para citar os dois que são marca registrada da Toyota, inicialmente elaborados para limitar o uso de insumos ao mínimo necessário, num país carente de matérias primas, acabaram sendo exportados para o mundo inteiro, tornando-se referência básica em matéria de eficiência e produtividade. Foram também pioneiros no uso da robótica na indústria e até mesmo no ambiente doméstico, para ajudar as pessoas nas tarefas domésticas.
E para coroar essa perfeição, os japoneses são de uma cordialidade e
educação que deixam todos embasbacados. Com terremoto e tsunami, não houve nenhum episódio de saque, nenhum distúrbio, nada do salve-se quem puder que ocorreu em Nova Orleans quando do furacão Katrina: os habitantes da terra do sol nascente têm suportado todas as recentes adversidades estoicamente. Enfim, aliam modernidade e tradição na medida certa! Ah, se todos os países tivessem o refinamento e a capacidade de absorver novidades que o Japão tem!
Consumo desenfreado e apego à hierarquia, à disciplina. Esta talvez tenha
sido a receita do capitalismo nipônico que em certos aspectos não deve ter passado despercebida aos olhos dos chineses, que nos últimos 30 anos vêm se dedicando a observar tudo, tomar emprestado algumas coisas e assim conseguir tornar seus habitantes membros plenos do mundo do consumo, mas ao mesmo tempo permanecer com a mesma hierarquia, com o mesmo respeito à autoridade. Sob essa ótica, o Japão mostrou o caminho das pedras aos chineses: crescimento baseado em exportações, papel ativo do Estado no desenvolvimento econômico. Mas por outro lado, o Japão, por ter adquirido o status de primeiro país não ocidental a entrar no clube do mundo desenvolvido, também pode estar pagando o preço do vanguardismo.
O fato é que a partir dos anos 90 o Japão perdeu o gás. Se em 1988 tinha
oito empresas entre as dez maiores do mundo, hoje não tem mais nenhuma e só tem seis empresas entre as 100 maiores. Foi recentemente ultrapassado pela China como segunda economia mundial e atualmente é apenas o
quinto exportador mundial, atrás da China, da União Europeia, da Alemanha e dos Estados Unidos. Sua dívida interna é de 200% do PIB. Enfim, são números que não mais impressionam, como outrora impressionavam aqueles que viam no Japão o futuro do capitalismo: um misto de dirigismo estatal e livre iniciativa. O que terá ocorrido com a sintonia fina antes tão bem orquestrada?
Muitas explicações têm sido dadas. A burocracia estatal, longe de ser um
estímulo ao crescimento, acabou sendo uma pedra no sapato da economia,
pois levou à realização de investimentos ineficientes, e as relações incestuosas do governo com certos setores da economia, especialmente o bancário, levou a uma inflação nos preços dos ativos no final da década de 80. Outros dizem que o problema é que a China copiou tão bem o modelo japonês que acabou por suplantar seu vizinho e rival no setor de eletroeletrônicos, roubando-lhe a galinha dos ovos de ouro e deixando-os sem nada para colocar no lugar.
Tudo isso pode ser verdade, e seria inútil aqui argumentar a favor de uma
ou outra vertente, afinal não sou especialista em macroeconomia internacional. Sob qualquer prisma que se olhe, o fato é que encontrar soluções para a perda de dinamismo da economia japonesa é um exercício inútil se levarmos em conta um outro dado, o mais importante de todos, que obscurece todos os outros. O Japão está morrendo.
Não há exagero nenhum nesta afirmação. Estima-se que o Japão, hoje com 127 milhões de habitantes, vá ter 25 milhões de cabeças a menos em 2050.
Isso devido ao fato de a taxa de natalidade ser de 1,2, o que não é suficiente para repor os indivíduos que morrem. A idade média de um japonês é de 45
anos e 23% da população tem mais de 65 anos. Em suma, um país que está envelhecendo rapidamente. Por mais que possa haver ideias brilhantes para permitir a retomada do crescimento econômico, por mais que os japoneses sejam experts em lidar com catástrofes, a dura realidade é que nada de muito relevante poderá ser feito sem haver pessoas para trabalhar.
Dirão alguns que é um problema fácil de resolver importando dekasseguis para compensar o déficit populacional, mas os japoneses são em primeiro lugar muito avessos a estrangeiros e estes dekasseguis não têm as competências necessárias para dar o impulso necessário à retomada do topo. Então talvez a solução seja estimular as japonesas e japoneses a procriar e dar à luz lindos japonesinhos, os futuros engenheiros especialistas em robótica e etc. Afinal cuidar de sua própria gente eles sabem, ao contrário de um país que eu conheço.
There lies the rub como diria Shakespeare, esta é a tarefa impossível, o preço do sucesso do Japão como sociedade de consumo. Ninguém está muito disposto a procriar. Para que investir em relacionamentos, casamento e filhos se eu tenho minha parafernália eletrônica à minha volta que me dá conforto e segurança? Há uma proliferação de homens na faixa de 23 a 42 anos a que se deu o epíteto de soushoku danshi, os homens herbívoros, que não se interessam muito por sexo e cujos hobbies incluem tirar fotos de templos budistas, passear e ficar na companhia dos seus amigos homens. 42% dos homens nessa faixa etária se consideram um soushoku danshi sem nenhuma vergonha de sê-lo.
Quanto às mulheres, elas se mostram insatisfeitas com esse novo tipo
masculino, que prefere rachar a conta e não é muito ativo na conquista amorosa. Filhos únicos de pais que trabalhavam fora, os herbívoros cresceram sozinhos, em meio a seus videogames, e têm pouca capacidade de comunicação. Assim, fica difícil haver acasalamento entre pessoas autocentradas, individualistas, para quem ser amigo de alguém é estar na sua lista de e-mails ou como link no Facebook ou outra rede social, sem necessariamente haver nenhum contato físico.
Fica claro que esses novos tipos humanos inventados no Japão, a tal ponto satisfeitos com o que têm que não precisam se relacionar, representam a vanguarda do fantasma que assola o Ocidente, ou seja, o colapso demográfico. Neste capitalismo do século 21, girando em torno do consumo, a família não tem mais nenhum sentido. Se antes ela era o centro da atividade econômica, o que levava os filhos a serem ativos, i.e. mão de obra para dar continuidade ao empreendimento familiar, seja uma lavoura ou uma oficina, hoje ela não é mais nada do que um sorvedouro de recursos a fundo perdido.
Criar filhos é muito caro: é preciso estimulá-los desde a infância com música, leitura, brincadeiras educativas, é preciso mandar-lhes à pré-escola,
escola e faculdade e torcer para que ele tenha alguma inteligência para poder ter empregabilidade em um mundo em que os trabalhos que demandam força física estão cada vez mais raros. E qual a recompensa de todo esse investimento? Concretamente nenhuma, pois ninguém espera que o filho irá cuidar dos pais idosos, afinal é cada um na sua. O lema é: não tenham filhos cuidadosos, a opção com melhor custo/benefício é guardar o dinheiro para investir em si mesmo e quando ficar velhinho poder comprar um robô para se dar banho, ajudá-lo a se movimentar e poder continuar operante em um mundo em que os liames pessoais são moeda rara.
O Japão, com toda sua modernidade trágica, é uma lição ao Ocidente sobre a dupla face da sociedade de consumo. Se ela foi o meio mais eficiente que o capitalismo encontrou para derrotar o comunismo e se perpetuar como o
único sistema disponível, ela também pode significar o seu fim.