(…) o raciocínio jurídico se dintingue, ao mesmo tempo, daquele que caracteriza as ciências, e especialmente as ciências dedutivas – onde é muito mais fácil chegar a um acordo sobre as técnicas de cálculo e de medida – e daquele que é encontrado na filosofia e nas ciências humanas, onde, em não havendo acordo, e na ausência de um juiz capaz de colocar fim ao debate por meio do seu julgamento, cada um permanece nas suas posições. Pelo fato de ser quase sempre bastante controverso, o raciocínio jurídico, em oposição ao raciocínio dedutivo puramente formal, poderá muito raramente ser considerado como correto ou incorreto, de uma maneira, digamos assim, impessoal.
Extraído do livro “Logique Juridique Nouvelle rhétorique” do filósofo nascido na Polônia Chaim Perelman (1912-1984)
Chaim Perelman foi um filósofo que passou a maior parte de sua vida na Bélgica e refletiu sobre o Direito. Em sua Lógica Jurídica, Nova retórica, Perelman estabelece as características do raciocínio jurídico que o fazem especial: quem quer que tome uma decisão no mundo do Direito, seja um legislador, seja um magistrado ou administrador, terá que assumir sua responsibilidade pessoal, devida à incerteza inerente ao ato de fazer justiça:qualquer solução que se tome terá um tanto de razões a favor e um outro tanto de razões contra, e o tomador da decisão deve ter plena consciência disso e maisimportante, das suas crenças pessoais e das condições políticas, sociais e culturais que o envolvem.
A natureza dupla do Direito como um instrumento de justiça arbitrário, no sentido de não poder ser justificado por conceitos universais, mas de acordo com determinados valores particulares, veio-me à cabeça nesta semana em que foi divulgada a retração do PIB dos 27 países-membros da União Europeia como um todo em 0,1% no primeiro trimestre de 2013 enquanto que o recuo para os países da zona do euro foi de 0,2%.A União Europeia, enquanto criação jurídica, ilustra bem esses dois aspectos.
De um lado, ela é a concretização do sonho de qualquer entusiasta do Direito Internacional, aquele direito que procura regular as relações entre os Estados e impedir que eles resolvam seus conflitos por meio da guerra.Criada pelo Tratado de Maastricht em 7 de fevereiro de 1992 como desenvolvimento da Comunidade Econômica Europeia estabelecida pelo Tratado de Roma de 1957, a União Europeia é um monumento ao primado da lei. O Direito da União, como é chamado agora depois do Tratado de Lisboa de 2007, tem efeito concreto e imediato sobre todos os cidadão europeus.
Assim é que qualquer Estado Membro que descumpra um regulamento, diretiva ou decisão emanada dos tratados e da Comissão Europeia, encarregada de fazê-los cumprir, está sujeito a ser acionado no Tribunal de Justiça. E a Corte Europeia de Direitos Humanos à qual tem acesso qualquer cidadão europeu, vela sobre o respeito à Convenção Europeia de Direitos Humanos, cuja concretização é o objetivo da União Europeia. Qualquer decisão tomada pela organização deve tercomo norte a defesa da dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito, dos direitos humanos, aí incluídos os direitos das minorias, podendo ser contestada judicialmente sobre essas mesmas bases. Enfim, como não admirar uma tal construção em prol da defesa de direitos?
E no entanto, as notícias sobre o Velho Continente são cada vez piores. O desemprego na zona do euro é de 12%, na Grécia e Espanha é de 26%. A Grécia está desmilinguindo, e a última novidade lá é uma nova droga, sisa, feita de metanfetamina e que é largamente utilizada pelos moradores de rua, com o beneplácito da polícia, para quem talvez pobre bom é pobre morto (para quem quiser saber mais, http://www.vice.com/en_uk/vice-news/sisa-cocaine-of-the-poor-part-1). A Grã Bretanha tem desemprego de 8% e uma dívida bruta do setor público de 90% do PIB.Na França os protestos contra o projeto de lei do casamento de homossexuais, que chegaram a reunir 270.000 pessoas em Paris no dia 24 de março, foram violentamente reprimidos pela polícia, que jogou gás lacrimogêneo nos participantes e arrastou pessoas sentadas tranquilamente na grama pelo pescoço, além de prender pessoas que estivessem usando camisetas contra o casamento gay no Jardim de Luxemburgo. Enquanto François Hollande insistiu em gastar capital político para defender os direitos de uma minoria, sua popularidade despencou para 26%, em meio a acusações de que um ex-ministro, Jerome Cahuzac, foi pego tentando transferir 15 milhões de euros para uma conta na Suiça.
Como é possível que a União Europeia, com todas as suas leis sobre direitos humanos, com todas as proteções jurídicas, esteja destratando seus cidadãos dessa maneira? Que justiça está sendo concretamente realizada sob o manto retórico dos Tratados e das Convenções?Retomando Perelman, há determinados grupos, representados por determinadas pessoas, que estão tomando certas decisões e estabelecendo a sua versão de justiça com base em uma determinada visão de mundo. De fato, José Manuel Durão Barroso, o presidente da Comissão Europeia que pede à população que aguente os sacrifícios para que no futuro possa haver a retomada do crescimento econômico, Christine Lagarde, a diretora-presidente do FMI que negociou com o governo do Chipre ajuda financeira emergencial aos dois bancos principais em troca do confisco do dinheiro dos depositantes, Angela Merkel, a primeira-ministra da Alemanha que dita que países vão receber ajuda e sob que condições, todos têm certos valores que estão colocando em prática por meio da União Europeia, valores digamos globais.
Acreditam que a moeda única deve ser mantida a todo custo, porque se ela fosse abandonada bancos e as empresas exportadoras alemãs perderiam, acreditam que o livre fluxo de pessoas é bom, pelo menos para as grandes multinacionais que têm a seu dispor um maior número de trabalhadores a preço menor, e acreditam que valores tradicionais como casamento entre homem e mulher, nacionalismo, patriotismo são coisas retrógradas que devem ser eliminadas totalmente. Por outro lado, o sofrimento que está sendo imposto aos países do Sul da Europa não é levado muito em conta, porque no fundo seus habitantes, indolentes e não competitivos, são descartáveis, não fazendo muita diferença se forem para o sacrifício.
Tudo isso para dizer que por trás de toda retórica legalista da União Europeia há pessoas e grupos poderosos tomando decisões, que não assumem responsabilidades, pois não são forçados a fazê-lo por aqueles que não concordam com o que está sendo feito. Assumir responsabilidades significaria explicitar quem exatamente está tendo sua liberdade, sua dignidade, seus direitos garantidos. Infelizmente os prejudicados por tais decisões encontram-se sob o fascínio da ideia de Europa, de modo que ruim com ela pior sem ela, leia-se, queda livre rumo ao Terceiro Mundo.
Prezados leitores, da próxima vez em que ouvirem a palavra União Europeia saquem seus revólveres, como diria não sei quem…
One Response to A Nova Retórica da União Europeia