Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentre dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; (…) De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geleia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas mulequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele.
Casa Grande&Senzala, página 482
Pode-se atribuir à influência israelita muito do mercantilismo no caráter e nas tendências do português: mas também é justo que lhe atribuamos o excesso oposto: o bacharelismo. O legalismo. O misticismo jurídico.
Casa Grande & Senzala, página 292
Eu fui ler Gilberto Freyre quando eu já tinha 30 anos, durante minhas viagens de trem e de metrô até o trabalho. É uma leitura fácil porque apesar de sua formação acadêmica como sociólogo e antropólogo ele nunca fez uso de termos técnicos da área , ou seja, jargão, para escrever. Daí um dos defeitos que podem ser apontados no trabalho de um dos nossos maiores intelectuais: a falta de rigor intelectual. Muito do que Freyre fala é mero “achismo”, não por leviandade ou ignorância, mas simplesmente porque como bom contador de histórias ele se deixava levar por suas próprias palavras e uma metáfora que não seria mais do que simples figura de linguagem adquire ares de pronunciamentos definitivos sobre o caráter de um povo.
Assim, se por um lado o estilo literário dele serve à perfeição para descrever a rotina de um senhor de engenho de Pernambuco no século XVII enos permite vislumbrar os efeitos de tal rotina sobre seu caráter e sua psiquê, por outro lado nos leva a becos sem saída. O que é misticismo jurídico para Gilberto Freyre? É acreditar na literalidade da lei, como os religiosos ortodoxos acreditam na literalidade da Bíblia? Aqui revelam-se as falhas do ilustre pernambucano: ele quer mostrar aos leitoresque há uma influência dos judeus sefarditas em Portugal e no Brasil, e usa como atalho uma bela expressão cujo sentido não é explicado pois não passa de uma intuição.
Feitas tais ressalvas, não tenho dúvidas de que Casa Grande&Senzala deveria ser leitura obrigatóriia em nossas escolas. A qualidade literária poderia ensinar muito aos nossos alunos sobre como escrever bem (quem leu meu artigo da semana passada sabe que prezo a educação feita daimitação dos mestres). Mais que isso, o vivo painel que ele dá de como viviam os brasileiros na época colonial pode lançar muitas luzes sobre nosso comportamento presente, e essa talvez seja a lição mais importante de cidadania que Gilberto Freyre pode proporcionar. Afinal, usar molequesnegros como saco de pancadas, não realizar nenhum trabalho útil além do mero exercício do poder, com se vê no extrato acima, têm certas consequências,como vemos todos os dias nas manchetes dos jornais em que o indivíduo pego com a boca na botija quer que o povo se f… ou o pobre se exploda, como diria Justo Veríssimo (lembram-se?).
Tendo acusado Gilberto Freyre de muitas vezes se deixar encantar demais por suas próprias palavras e tirar conclusões apressadas, vou conscientemente incorrer no mesmo erro,eximindo-me de culpa sob a alegação de que não pretendo aqui neste meu espaço ter nenhum rigor científico. Ao reler as passagens de Casa Grande & Senzala sobre o bacharelismo e sobre a vida mansa e irresponsável dos membros da elite respaldados pelo trabalho dos negros na lavoura do açúcar, deixei-me levar pelas analogias e refleti sobre a PEC 37, a proposta de emenda constitucional que quer displinar os poderes investigatórios do Ministério Público, e a PEC 33, outra proposta de emenda constitucional, cujo objetivo é submeter certas decisões do STF ao crivo do Legislativo.
É uma briga dos bacharéis, promotores de um lado, policiais de outro, no caso da primeira, STF de um lado, Congresso do outro, no caso da segunda (considerando que a maior parte dos congressistas é formada de advogados). Muitos bem pensantes consideram que a aprovação das decisões do STF pelo Legislativo é uma afronta ao Estado de Direito por interferir nos Poderes do Judiciário, e muitos promotores acham que suasinvestigações não podem ser tolhidas para que haja um efetivo combate à corrupção.Há na minha opinião uma falsa discussão, produto da arrogância dos letrados que querem dar-se “carteiradas” mútuas.
É uma falsa discussão produto da arrogância pois leva a entender que há poderes melhores do que outros. O STF, o guardião da Constituição, tem realmente tido um papel muito destacado. Isso se deve sem dúvida ao fato de que vige no Brasil o princípio do non liquet, isto é, o juiz deve decidir o caso que lhe é apresentado, mesmo que não haja lei que o enquadre e nosso Legislativo tem falhado em atualizar as leis e elaborar outras que dêem conta de novas situações. Obrigado a suprir as lacunas, o STF interpreta, mas com certeza às vezes extrapola, arvorando-se como guardião de certos princípios que longe de serem constitucionais são na verdade dos próprios ministros. O caso da união de pessoas do mesmo sexo é um exemplo: apesar de nossa Constituição usar as palavras homem e mulher reiteradamente, os ministros em maio de 2011 reconheceram como legal a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Dadas as implicações financeiras e sociais do reconhecimento do casamento de homossexuais, não caberia ao Poder Legislativo decidir sobre isso, isto é aprovar lei que mude o texto da nossa Constituição? Ou o Congresso Nacional é de muito baixo nível, dominado por evangélicos ignorantes, lixos humanos?Muitas pessoas parecem ver no STF, um órgão de doutores letrados, uma instância mais bem preparada para decidir sobre as questões nacionais. Mas eu pergunto: onde fica a tal da democracia e a ideia de queo povo, ou pelo menos seus representantes eleitos, deve decidir sobre aquilo que afeta seus interesses e seu bolso?E o STF dá sinais de que assim se vê, tanto que o Gilmar Mendes na última semana bateu boca com Renan Calheiros, vociferando contra o absurdo jurídico de submeter a instãncia máxima do Judiciário brasileiro ao crivo do Legislativo.
Não me entendam mal, não estou eu aqui a defender a PEC 37 e muito menos a PEC 33.O ativismo do Judiciário, o apagão do Legislativo, a impunidade, a corrupção são problemas estruturais no Brasil, eu diria até culturais,seguindo a lição de Gilberto Freyre. Emendas à Constituição não vão resolvê-los. Meu ponto é que o melhor caminho a seguir é que as instituições brasileiras, a Polícia, o Ministério Público, o STF, o Congresso, todos parem de catar piolhos, parem de se considerarem uns melhores do que os outros e colaborem para cumprirem seus respectivos deveres, já colocados em nossa celebradíssima “Carta Magna”. Senhores bachareis, menos invencionices jurídicas, menos emendas constitucionais, menos súmulas vinculantes, menos decisões históricas, menos espalhafato, menos troca de farpas, e mais humildade e mais trabalho sério, constante, ou se preferirem, menos casa grande e senzalae mais Minha Casa Minha Vida. O Brasil só terá a ganhar com isso.