Prezados leitores, hoje meu assunto é algo um tanto quanto distante de nós brasileiros mas que, a depender do desenrolar da situação, com certeza nos afetará. Falarei aqui de uma pequena ilha de 9251 quilômetros quadrados situada no Mediterrâneo Oriental, ex colônia britânica, disputada pela Turquia e pela Grécia, um milhão de habitantes, aproximadamente, PIB de 23 bilhões de dólares em 2012, 80% do qual é composto por serviços (diga-se turismo, finanças e imóveis), centro de lavagem de dinheiro russo, dizem as más línguas (de acordo com a agência de classificação de risco Moody’s há 31 bilhões de euros de ativos russos no país), dois de seus maiores bancos entre os maiores detentores de títulos gregos.
Bem, depois de tantas informações, vocês já devem ter advinhado que estou a falar de Chipre, que tem vivido fortes emoções ultimamente. Resumirei aqui os principais fatos. Em face de um déficit público de 7,4% em 2011 e de uma recessão econômica que em 2012 fez o PIB recuar 2,3%, o governo cipriota em julho de 2012 foi de pires na mão à tríade, ou melhor, a ‘troika’, que é como é conhecido o grupo que manda na Europa, colocando todos os governos nacionais em seu bolso: a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu. Depois de meses de negociações, no dia 16 de março de 2013 a zona do euro e o FMI chegam a um acordo sobre o plano de ‘ajuda’ aChipre: 10 bilhões de euros seriam concedidos em troca de o governo impor uma taxa, eufemismo para confisco, de 6,75% sobre os depósitos bancários abaixo de 100.000 euros, e de9,9% sobre os depósitos bancários acima de 100.000 euros. Uma tunga, como diria o Elio Gaspari, que renderia 5,8 bilhões de euros, de acordo com a ideia defendida pela Alemanha de que os cipriotas deveriam compartilhar a dor, pois afinal não seria justo que o suado dinheiro dos diligentes países do norte da Europa fosse usado para resgatar oligarcas russos, para não falar máfias russas que usavam os bancos cipriotas para “alvejar” seus ganhos.
Aparentemente tudo muito justo, sacríficios compartilhados, o pacote usual quenós latino-americanos conhecemos muito bem de impor austeridade à população.No caso de Chipreas medidas incluiriam privatização de serviços públicos, empenho de futuras reserva da exploração de gás natural, corte nos salários dos funcionários públicos e nos benefícios sociais. Digo incluiria porque o roteiro preparado pela troika teve que sofrer modificações em vista dos protestos dos cipriotas que foram à rua contra o confisco dos depósitos e pior, tentaram em massa retirar seu dinheiro nos caixa automáticos.
Nada como o povo instilar um pouquinho de medo nos poderosos para que estes repensem suas prioridades. Depois de idas e vindas no parlamento cipriota, finalmente Chipre entra em acordo com seus ‘salvadores’: o confisco, de até 30%, incidirá sobre os depósitos acima de 100.000 euros. O maior banco do país, o Banco de Chipre permanecerá aberto, mas o Banco Popular, o segundo maior, tem sua falência decretada. Em 28 de março, depois de 12 dias de feriado bancário no país, os bancos abrem, mas atualmente vigoram estritos controles de capital: o limite de saque diário é de 300 euros por dia para cada banco em que o indivíduo tem conta, as despesas de cartão de crédito não poderão ultrapassar 5000 euros mensais e as transações comerciais também devem respeitar o limite de 5000 reais. Na primeira semana de abril o Banco Central Europeu indicou que os detentores de depósitos no Banco de Chipre de mais de 100.000 euros verão até 37,5% do valor transformado em ações e 22,5% dos depósitos imobilizados por aguns anos.
Alguns dirão que o arranjo finalmente obtido é justo porque só vai punir os ricos. Bem, isso é uma meia verdade. As restrições de capital vão afetar a economia como um todo, pequenos, médios e grandes negócios, e nem todos os que possuem 100.000 euros no banco são mafiosos russos lavadores de dinheiro. Haverá poupadores de uma vida inteira, que esperavam usufruir deste dinheiro na velhice que serão prejudicados, haverá pessoas que investiriam em algum negócio, haverá quem tinha acabado de vender um imóvel, talvez o único imóvel que possuía. Como sempre ocorre, os justos pagarão pelos pecadores.
Mas o pior dos recentes acontecimento em Chipre, e aqui tentarei explicar porque é algo com o qual todos nós habitantes deste mundo globalizado devemos nos preocupar, é que estabelece um precedente e avança ainda maisno caminho da blindagem cada vez maior que tem se dado aos bancos. A crise das hipotecas imobiliárias que estourou nos Estados Unidos em 2008 mostrou abertamente como os bancos nos países desenvolvidos tinham se transformado em verdadeiros cassinos, antros de apostas arriscadas: no caso americano aposta na higidez de hipotecas concedidas a pessoas que não tinham a mínima condição de pagamento, masque a engenharia financeira dos hedges e dos swaps tornava palatáveis e pior, atrativas a investidores; no caso europeu, apostas em títulos de governos perdulários de países que queriam usufruir dos altos padrões de vida dos alemães, holandeses e demais nórdicos sem trabalharem como eles.
A solução dada quando estes bancos, “too big too fail” tiveram problemas, foi ajuda governamental: nos Estados Unidos, Bush e Obama concederam1 trilhão e 450 bilhões de dólares de ajuda às instituições financeiras;na Europa a Espanha obteve 130 bilhões de dólares dos recursos comunitários para recapitalização dos seus bancos, o mesmo ocorrendo em menor escala com outros países. O resultado é que o princípio básico do capitalismo, de que quem não tem competência não se estabelece, foi totalmente subvertido. O comportamento irresponsável é premiado com polpudas ajudas estatais, sob a justificativa de que deixar os bancos quebrarem é levar toda a economia à bancarrota.
O que acaba de ocorrer em Chipre é um passo além, na medida em que confiscar dinheiro dos depositantes e fazê-los sócios na marra de instituições que na melhor das hipóteses levarão anos para se recuperar,é torná-las ainda mais irresponsáveis: não só elas podem ser geridas como cassinos que só beneficiam os crupiers, no caso, os executivos que se premiam com grandes bônus, mas agora nem mais precisam se preocuparem cumprir a obrigação básica de zelar pela integridade dos depósitos, porquepoderão meter a mão neles quando quer que tenham dificuldades.
Diante de um tal cenário sombrio qual é a melhor coisa a fazer para se proteger da delinquência financeira tutelada pelo Estado? Tirar o dinheiro do banco e comprar ouro? E se todos os correntistas dosgrandes bancos dos países desenvolvidos perceberem que seus direitos de propriedade foram jogados aos leões e resolverem resgatar seu dinheiro, o que será da economia mundial? Haverá um colapso total dos meios de pagamento? Em suma, devemos nos preparar para o estouro da boiada e tentar pular a cerca? Oxalá que os desdobramento da crise em Chipre não se revelem tão catastróficos. É esperar e torcer, de preferência do outro lado da cerca, vendo de longe os bois em desabalada correria.
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