Vai fundo, vai fundo, irmão, vai fundo no fundo monetário internacional, que já
estourou o prazo
e os corredores vão mandar pro pau
As palavras acima são parte da letra da música “Vai Fundo” do finado Grupo Joelho de Porco. Elas ficaram na minha cabeça desde a época em que a palavra FMI era parte cotidiana da vida de todos os brasileiros, da época em que víamos o Cid Moreira anunciar no Jornal Nacional que o “Ministro do Planejamento, Delfim Netto, juntamente com o Ministro da Fazenda, Ernane Galveas, embarcaram ontem para Nova Iorque – ou será que era para Washington? para negociarem um novo empréstimo-jumbo – ou será empréstimo-ponte?” E lá aparecia a imagem dos dois tecnocratas brasileiros com suas devidas pastinhas de papéis de trabalho, indo de pires na mão pedir mais dinheiro para pagar os juros que já haviam vencido.
Não era nunca para pagar o principal, a propósito será que algum dia nós, enquanto nação, conseguimos pagar o principal de alguma dívida? Será que chegamos a pagar à Inglaterra o dinheiro que tomamos emprestado para indenizar Portugal pelos prejuízos da nossa declaração de independência (aliás, feita por um legítimo português)? Talvez seja natural mesmo não pagar. O objetivo dos banqueiros é fazer com que nós sempre fiquemos amarrados a algum tipo de corda e a tarefa deles é ir liberando aos poucos. Quanto mais corda eles nos dão, mais fácil é o auto-enforcamento: basta pendurar, dar o nó e pronto, lá se tem uma asfixia mecânica.
A cianose e o livor cadavérico da asfixia foram bem conhecidas do povo brasileiro que nos anos 80 e metade dos anos 90 se viu mergulhado em um período negro de estagflação, isto é, crescimento econômico pífio ou nulo e inflação estratosférica. Isso significou desemprego, arrocho salarial, explosão na criminalidade, esgarçamento do tecido social (já roto de 500 anos). Mas sob a batuta brilhante dos nossos economistas, os imensos sacrifícios impostos à população, as vidas perdidas, os futuros comprometidos, tudo isso acabou valendo a pena. Descemos ao inferno e o sistema financeiro internacional, reconhecendo nossos esforços, nos vendo exangues e apoquentados em meio aos círculos de fogo, nos ofereceu uma via de escape, um elevador que subiria rapidamente das profundas de Hades até o mundo normal: o Consenso de Washington. Sob a condição de que vendêssemos as empresas que haviam sido a muito custo construídas com os petrodólares, e assim acumulássemos reservas internacionais mediante a compra de títulos do Tesouro Americano, poderíamos conseguir o beneplácito da banca para renegociarmos nossos papagaios, pagá-los em condições melhores e assim aliviar um pouco a tensão da corda.
E assim foi feito. E de fato ficamos bem aliviados. As reservas permitiram lançar uma moeda nova, o real, de valor mais estável. A inflação controlada deu a chance aos pobres de terem acesso a bens básicos de consumo, e ao crédito. O boom das commodities nos permitiu fazer caixa para comprar mais títulos do Tesouro Americano, acumular mais reservas, ganhar mais a confiança dos investidores internacionais, tomar mais dinheiro emprestado. E o resultado é este: nossa dívida pública é hoje de R$1,734 trilhão. A razão dívida líquida do setor público total – PIB estava em 36,5% em julho de 1998 chegou a 57% em setembro de 2002 e em setembro de 2009 estava em 43,5%. Ou seja, continuamos incapazes de controlar nosso endividamento de maneira consistente, ora melhorando, ora piorando, mas o importante é que gozamos da confiança dos banqueiros que estão sempre lá para nos dar mais corda. Eles sabem que se a coisa degringolar e tivermos um novo problema de liquidez, estaremos dispostos a seguir a receita da cartilha imposta a todas as marionetes do sistema global. Pires na mão às porta do FMI e depois venda dos ativos nacionais.
Isso tudo me vem à cabeça vendo o desenrolar do que ocorre na Europa. A Grécia está sacudida por protestos freqüentes na Praça Sintagma, os membros do governo não se entendem. Uns achando que a rendição ao FMI é necessária, outros que o melhor é sair do Euro e declarar o calote. A Grécia deve 22,7 bilhões aos banqueiros alemães, 15 bilhões aos banqueiros franceses e 190 bilhões ao Banco Central Europeu. O plano é o mesmo que nos foi sugerido na década de 90: venda dos ativos do país, no caso terras e portos públicos, empresas de saneamento e tratamento de água, empresa de telefonia e locais turísticos no valor total de 50 bilhões. O objetivo claro não é o de investir em infraestrutura nova, é apenas o de se apropriar do que já está instalado e auferir lucros.
Diga-se de passagem, o que o FMI quer impor à Grécia ocorreu aqui no Brasil. Em São Paulo privatizações foram feitas da distribuidora de energia, a Eletropaulo, da distribuidora de gás, Comgás, das rodovias estaduais, tudo já construído. Nada foi feito de novo, nenhuma usina hidrelétrica, usina termoelétrica, nenhuma rodovia nova. Apenas concedeu-se aos compradores o direito de explorar algo que já estava lá, construído com dinheiro público. As privatizações serviram para fazer caixa momentaneamente, mas não tinham nenhum objetivo de longo prazo de permitir investimentos produtivos tão necessários em infra-estrutura. E o que está sendo feito de novo em termos de metrô e rodovias é com empréstimo do BNDES às empresas privadas que pagarão juros camaradas e cobrarão tarifas escorchantes.
Talvez não haja motivos para acreditarmos que dessa vez haverá uma mudança no script. Portugal acaba de eleger um primeiro-ministro de direita que promete privatizar serviços públicos e fazer o milagre de pagar os banqueiros e ao mesmo tempo fazer o país crescer. A Irlanda se comprometeu a pagar tudo direitinho. A pequena Islândia em referendo realizado em janeiro deste ano disse não ao acordo realizado com banqueiros ingleses e holandeses e estes se verão obrigados a reconhecer perdas, mas a batalha não está ganha, porque há o recurso aos tribunais, as ameaças de não aceitar a Islândia na União Européia. É de esperar que os europeus tenham mais capacidade de resistência do que nós brasileiros,que cumprimos nosso papel na tragicomédia “Vai Fundo no Fundo” e continuamos aqui patinando em crescimento mediano, com a corda no pescoço em dívidas, risco de desastre ao menor desassossego no cenário internacional. Porquinhos europeus, não se envergonhem de sua condição de suínos e grunham bastante! Talvez isso assuste as hienas da globalização e elas vão cheirar outra carniça.