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Guerra e Paz

Posted by on 24/04/2025

A verdade é raramente simples; normalmente ela tem uma mão direita e uma esquerda, e anda com os dois pés. Alguma vez houve, desde Ashoka, uma grande guerra em que um país admitisse que a causa do inimigo era mais justa? É parte da natureza do cidadão médio fazer do seu Deus um particeps criminis nas guerras do seu país.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Em que pese cinco minutos antes o Príncipe Andrei tivesse sido capaz de dizer algumas palavras aos soldados que o estavam carregando, agora com os olhos fixos em Napoleão, ele permaneceu em silêncio … Tão insignificante parecia naquele momento todos os interesses que prendiam a atenção de Napoleão tão mesquinho parecia seu próprio herói, com sua vaidade insignificante e sua alegria na vitória, em comparação com o céu sublime, equânime e gentil que ele havia visto e entendido, que ele não conseguiu responder a ele. Tudo parecia tão fútil e reles em comparação com a sequência de pensamentos austeros e solenes que a fraqueza pela perda de sangue, o sofrimento e a proximidade da morte despertaram nele. Olhando nos olhos de Napoleão, o Príncipe Andrei refletiu sobre a insignificância da grandeza, a falta de importância da vida que ninguém podia entender, e a desimportância ainda maior da morte, cujo significado nenhum ser vivente podia entender ou explicar.

Trecho retirado do livro “Guerra e Paz” do escritor russo Liev Tolstoy (1828-1910)

 

A situação é calamitosa para a Ucrânia – Ele pode obter a Paz ou pode lutar por mais três anos antes de perder todo o País. Eu não tenho nada a ver com a Rússia, mas tenho muito a ver em querer salvar, em média, 5.000 soldados russos e ucranianos por mês que estão morrendo por nenhum motivo.

Trecho de twitter publicado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre a tratativas para um acordo de paz que coloque um fim à Guerra da Ucrânia

    Prezados leitores, algum de vocês já teve uma experiência epifânica? Um momento vivido de maneira tão intensa que deixou uma impressão na mente e levou à reflexão profunda e à descoberta de uma verdade fundamental? Escritores fazem uso desses momentos de revelação em suas narrativas para passarem sua mensagem da maneira mais eficaz possível: não explicando nem tecendo argumentos, mas simplesmente mostrando na prática. O trecho que abre este artigo ilustra essa técnica literária.

    Andrei Bolkonski, oficial do Exército Russo, jaz ferido no campo da Batalha de Austerlitz, travada em 2 de dezembro de 1805 na Morávia, entre o exército francês, comandado por Napoleão Bonaparte (1769-1821), e uma coalizão entre a Áustria e a Rússia, batalha da qual o já imperador Napoleão I sai vitorioso. Esvaindo-se em sangue, já em estado de alucinação, Bolkonski olha para o céu e em contemplando o azul do firmamento chega a uma constatação que cala profundamente em sua alma. A vida humana, o sofrimento, a glória do poder, nada disso se compara à beleza e ao mistério da criação. Não sabemos por que estamos aqui, como aqui chegamos e para onde iremos, e jamais iremos saber. Só nos resta atermo-nos ao fundamental e deixarmos o que é insignificante de lado: o fundamental é desfrutar das coisas simples da vida e deixar de lado a busca pelo poder, pelas honras e pelas realizações.

    Não revelarei aqui que caminhos o momento epifânico de Andrei o leva a percorrer depois da experiência de quase-morte em Austerlitz. Para saberem leiam as quase 1.400 páginas do livro ou assistam à minissérie produzida pela BBC, em 2016. O que importa para os propósitos deste artigo é que o autor de Guerra e Paz, ao descrever o período em que a Rússia participou das Guerras Napoleônicas (1803-1815), quer mostrar, através do percurso existencial de seu personagem, a futilidade da guerra e propor a paz. Bolkonski, que antes de Austerlitz admirara o homem que havia por seu próprio esforço conquistado um reino para si, passa a desprezar sua vaidade e sua empáfia. Afinal, o poder e a glória de Napoleão foram conquistados à custa de milhares de mortos em relação ao quais o pequeno corso sentia indiferença, como mostra a cena do seu passeio a cavalo em meio aos moribundos e ao já defuntos. Para o pacifista Tolstoy este era um preço alto demais a ser pago pela sociedade para que um homem genial como Napoleão pudesse dar vazão às suas capacidades intelectuais.

    Este sacrifício de vidas em vão também é rechaçado, em pleno século XXI, por Donald Trump. Na semana passada eu o abordei neste meu humilde espaço, tecendo a hipótese de que ele talvez cumpra o papel que o filósofo Friedrich Hegel dava a certos personagens históricos de serem a expressão da força dos eventos e das circunstâncias: de estarem de tal modo em sintonia com o espírito do tempo que se tornam uma força que dá unidade ao que estava disperso, dando significado ao que era informe e caótico e que por meio deles se cristaliza e consolida. Nesse sentido o Orange Man poderia ser a expressão do fim da globalização e do livre trânsito de mercadorias, pessoas e capitais entre os países.

    Por outro lado, talvez o gênio hegeliano de Trump esteja alhures. As idas e vindas em relação às tarifas sobre os produtos fabricados na China e o estabelecimento de exceção às alíquotas de 144% em relação a produtos eletrônicos, deixam claro que Trump e sua equipe econômica tiveram que improvisar e recuar parcialmente porque a reação do mercado foi preocupante para os americanos. Houve uma venda acentuada de títulos do Tesouro e com isso uma disparada dos juros. Considerando que o déficit federal dos Estados Unidos foi de 1,8 trilhões de dólares em 2024, qualquer alta nos juros pode dificultar a rolagem da dívida, tornando-a mais cara.

    Quem vendeu os T-bonds? Talvez o governo da China, que atualmente possui 782 bilhões de dólares investidos nesses títulos? A pressão surtiu efeito e Trump revogou parte do tarifaço. Mesmo que o governo americano acabe por seguir em frente com ele, é incerto se haverá resultado palpável em termos de reindustrialização do país. Os produtos made in China participam de tantas cadeias de suprimentos que com certeza muitas indústrias nos Estados Unidos se ressentirão da falta de insumos para a fabricação de seus produtos. Foram décadas e décadas em que o Império do Meio investiu em infraestrutura física e em capital humano de forma a se tornarem produtivos e competitivos. Não será um tarifaço de Trump que reverterá essa situação, outras frentes terão que ser abertas para melhorar as condições econômicas dos Estados Unidos e talvez o Orange Man não tenha o tempo para trabalhar nelas.

    Desse modo, se for para Trump expressar o espírito da época talvez seja pela busca da paz. Como ele deixa claro no twitter citado na abertura deste artigo, o Presidente dos Estados Unidos quer colocar um basta à Guerra na Ucrânia, que se arrasta desde fevereiro de 2022. Não importa saber quem tem razão: se são os russos que dizem querer acabar com o nazismo que floresce na Ucrânia e defender minorias étnicas russas que são oprimidas no país ou os ucranianos, que reclamam da invasão do seu território e da violação da sua soberania.

    Conforme Will Durant explica na última parte do seu livro “The Age of Napoleon”, ao fazer um balanço da carreira do corso genial e infernal, a verdade é complexa. As partes beligerantes tendem a apresentar as razões do seu comportamento sob a luz mais favorável possível e raramente reconhecem alguma validade na argumentação contrária. O que fazer? Continuar lutando até que a força das armas dê razão a um ou a outro? Ou deixar as justificativas de parte a parte de lado e enfocar o término das hostilidades para que vidas sejam poupadas?

    O Orange Man parece inclinar-se pela busca da paz sem muitas perguntas sobre quem é inocente e quem é culpado pela guerra, pois qualquer fenômeno histórico comporta inúmeros ângulos de visão. Se ele conseguir que as hostilidades cessem, os russos e ucranianos que estão no campo de batalha agradecerão. Eles podem não contemplar o céu e filosofar como Andrei Bolkonski fez em 1805, mas poderão voltar para sua família e a uma vida normal sem sons de artilharia e de bombas caindo ou o zumbido de drones voando no espaço.

    Prezados leitores, oxalá Trump, que parece não entender muito de economia, possa ser o gênio da paz neste século XXI.

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