Se as operações da história são uma expressão da Razão – das leis inerentes à natureza das coisas – deve haver algum método tanto no processo quanto no resultado. […] Há, então um desígnio geral ou total por trás do curso da história? Não, se isso significa um poder supremo consciente guiando todas as causas e efeitos em direção a um objetivo; sim, na medida em que o amplo fluxo dos eventos, à medida que uma civilização avança, é movido pelo total do Geist ou Mente para levar o homem cada vez mais perto da sua meta, que é a liberdade por meio da razão.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831)
Para mim, eu busquei sempre a liberdade mais do que o poder, e o poder somente porque em parte ele favorecia a liberdade. O que me interessava não era uma filosofia do homem livre (todos aqueles que tentam fazer isso me aborrecem), mas uma técnica: eu queria achar a dobradiça à qual nossa vontade se articula ao destino, onde a disciplina é um acessório da natureza, e não um estorvo para ela.
Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76 d.C.-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121 d.C.-180 d.C.), que seria imperador
Prezados leitores, uma das minhas últimas manifestações de energia produtiva deu-se há mais de dez anos, quando escrevi meu trabalho de conclusão de curso, o famigerado TCC, no último ano da faculdade. Para conseguir fazê-lo eu me obriguei a um ritual: sentar-me na cadeira no domingo à tarde, acontecesse o que acontecesse, e escrever ao menos um parágrafo, abdicando de assistir ao Domingão do Faustão. Fazendo isso durante seis meses consegui completar a tarefa e apresentar minha opus magna ao meu orientador, que era o meu professor de Direito Internacional e ao seu convidado, outro professor da mesma área. Meu tema foram duas disputas em que o Brasil se envolveu na Organização Mundial do Comércio, uma a respeito do algodão e outra a respeito dos aviões da Embraer. Para discuti-las tracei um painel histórico das origens da OMC e ao final teci algumas considerações sobre o tal do livre comércio, que de livre tem muito pouco, dadas as intervenções governamentais na taxa de câmbio, nos tributos e nos incentivos dados às empresas para se tornarem grandes exportadoras.
Minha humilde obra acadêmica me veio à cabeça com esta bomba atômica solta pelo presidente americano Donald Trump, que depois de retirar os Estados Unidos da OMC logou quando tomou posse em 20 de janeiro, agora vem impor tarifas alfandegárias contra todos os países do mundo, jogando no lixo os princípios e regras do comércio internacional. Será este o prenúncio do fim da livre circulação de mercadorias, serviços e capitais que foi a tônica da ordem mundial vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial e se acelerou ainda mais depois do fim da Guerra Fria? Será que em causando choque e surpresa, Trump é o gênio da concepção hegeliana? Para tentar responder a essa pergunta, devo explicar a filosofia da história de Friedrich Hegel.
Conforme o trecho que abre este artigo, o curso da história é um rio caudaloso que segue uma determinada rota e corre para um determinado ponto. Essa rota são as leis inerentes à natureza das coisas, a que Hegel dá o nome de Razão, e esse ponto de chegada é o ápice da liberdade por meio da Razão. O gênio, para Hegel, é aquele homem que dá expressão a esse espírito que anima os acontecimentos históricos e que faz com que eles tendam a um determinado fim. Nesse sentido, o gênio é o homem que percebe de maneira consciente ou intuitiva para onde o vento sopra e, navegando nas águas turbulentas da história, permite que o espírito que emana do fluxo dos acontecimentos possa revelar-se ao final quando o caminho é completado e o objetivo cumprido. Hegel dá como exemplo de gênio Napoleão, que intuiu as necessidades do seu tempo e foi o agente da necessidade da Europa de leis consistentes e válidas para todos, que substituíssem a miríade de regras impostas em cada local da Europa de acordo com o senhor feudal de plantão.
Sob essa perspectiva, a tarefa do gênio não é trazer a felicidade, mas estando em conexão perfeita com o espírito do tempo, fazer com que haja o movimento dialético da confrontação da tese pela antítese e a criação da síntese, que em última análise é o fim da história. O gênio faz com que o progresso ocorra porque, longe de lutar contra o fluxo dos acontecimentos ele ajuda a acelerá-los, cristalizando tendências que estavam apenas incubadas. É por isso que o gênio é livre: ele se livra das restrições porque ele não luta contra a correnteza, ele nada a favor dela. Não é por acaso que Adriano, o imperador romano retratado por Marguerite de Yourcenar, quer atar sua vontade ao destino de modo que ele pudesse cavalgar livremente. Conforme o trecho citado na abertura deste artigo, Adriano não quer negar a natureza, não quer tolhê-la, ele quer montar sobre ela qual em um cavalo para tirar o máximo da vida.
Nesse ponto retomo a pergunta que coloquei no início: será que Donald Trump é um gênio que intuiu o Espírito do século XXI e por isso está destruindo implacavelmente os paradigmas do século XX? Será que ele intuiu que no século XX os Estados Unidos eram um império e agora ele precisa se transformar em uma nação entre outras e que a era dos impérios ficou definitivamente para trás? Será que ele percebeu que a “América” havia imposto a regra do livre comércio feito em dólares para que, em troca de absorver a produção industrial do mundo, ela também absorveria os capitais do mundo e poderia ter uma moeda forte que lhe permitisse gastar à vontade para manter seu poderia militar nos quatro cantos da Terra? Será que agora Trump quer que seu país siga o fluxo da história e volte a ser um país normal, que precise produzir coisas para poder trocá-las por outros produtos e não simplesmente dar notas verdes impressas a rodo aos seus parceiros comerciais? Será que ele intuiu que a hegemonia do dólar como reserva internacional ficou para trás e o melhor a fazer é tratar de adaptar os Estados Unidos ao novo normal? Será que com o fim da globalização os países procurarão ficar mais resilientes, produzir localmente e evitar depender de cadeiras globais de suprimento? Não será o encurtamento das cadeias de suprimento o melhor meio de diminuir nossa pegada de carbono em tempos de aquecimento global? Ou será que o Orange Man é um louco, ignorante, incompetente e está simplesmente causando uma disrupção na ordem econômica pós-1945 sem nada trazer de benéfico nem aos americanos e nem ao mundo? Será que a política econômica de Trump só trará recessão, perdas financeiras e desemprego em escala mundial?
Prezados leitores, como definitivamente não sou nenhuma gênia não tenho como saber para onde o rio da História está correndo, qual o Zeitgeist do século XXI. Seja como for, fica a lição de Hegel: a história do mundo não é o palco da felicidade, porque havendo movimento há sempre as dores do parto da nova síntese, do novo fim da história, que gerará um outro ponto de partida. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e nos preparemos para sofrer em prol da manifestação plena da Razão no mundo, seja através do Orange Man ou de algum outro que o desafie.