A nova base, tanto da moral quanto da lei, seria o princípio da utilidade – a utilidade de um ato para o indivíduo, de um costume para o grupo, de uma lei para o povo, de um acordo internacional para a humanidade. […] à parte seu objetivo imediato, o propósito final e o teste moral de todas as ações e leis é o grau em que elas contribuem para a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832)
Determinados homens têm uma alma suficientemente forte para tais devotamentos, cuja recompensa encontra-se para eles na certeza de ter proporcionado a felicidade à pessoa amada.
Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)
Não posso dizer a você tudo aquilo que eu vi, porque eu presenciei crimes contra os quais a justiça é impotente.
Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)
Prezados leitores, permitam-se contar-lhes o final do livro Colonel Chabert, cujo enredo descrevi aqui neste meu humilde espaço na semana passada (no artigo Felicidade para quê?) até o momento em que a transação entre Hyacinthe e Rose, mediada pelo advogado, se inicia e logo desanda, quando Chabert entra na sala impulsionado por suas emoções. Ao perceber que seu primeiro marido está irreconhecível, a posição frágil que a princípio a mulher ocupava por não querer um escândalo que lhe prejudicasse a posição social e o casamento com um aristocrata se desfaz. Rose, recuperada do medo da ameaça do processo judicial, amealha suas forças mentais e parte para o ataque.
O ataque dela é certeiro e fatal. Ela vê que o pobre sobrevivente da Batalha de Eylau, que um dia a tirou da prostituição e a fez sua esposa, ainda gosta dela, o que permite à mulher manipular suas emoções. Rose leva Hyacinthe para longe do advogado, para uma casa no campo, onde convive com ele durante dias, mostrando seu lado meigo, frágil, de mulher preocupada com a sorte de seus filhos se seu casamento for desfeito. Chabert vai sendo engambelado, vai acreditando na boa fé da esposa que agora é mãe de família e quer proteger as crianças. Como ele a ama, jamais fará nada que a faça sofrer e conforme o trecho que abre este artigo, a recompensa do amador é ver o objeto do seu zelo feliz.
A ilusão do pobre Chabert se desfaz quando Rose apresenta-lhe um documento preparado por seu próprio advogado atestando que ele não é o Coronel Chabert, para que dessa forma ela resolva de vez o problema e ele volte ao mundo dos mortos e não possa exigir um centavo dela. Chabert desgostoso, dando-se conta de que a tênue esperança de que ela pelo menos o deixasse viver em algum de seus imóveis rurais, dignamente, sem incomodar ninguém, diz a Rose que ele não assinará nada e que ela não precisa se preocupar porque não haverá processo judicial nenhum. A condessa Ferraud sai materialmente ilesa do incidente, com seu patrimônio intacto. Chabert, depois de vagabundear durante meses, é preso e anos mais tarde acaba terminando seus dias em um asilo para indigentes, meio demente.
Balzac mostra neste livro os limites da justiça. A justiça falhou em ajudar o Coronel Chabert, como o próprio advogado dele, Derville, admite no fim do livro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. A felicidade da condessa, que não tinha a mínima compaixão pelo infortúnio do primeiro marido e só queria livrar-se dele, se fosse preciso colocando-o num hospício, é obtida por meio do sacrifício de Chabert, que se dispôs a sair de cena porque seu amor pela esposa era maior do que seu desejo de vingar-se pela mesquinharia dela. Enfim, temos aqui um jogo de soma zero em que um perde para que o outro ganhe e vice-versa.
Jeremy Bentham, o pai do utilitarismo, certamente não aprovaria esse arranjo. A ideia de uma pessoa sacrificar-se pela outra, de inspiração religiosa, para ele era abominável, porque normalmente significava que o grupo dos poderosos pedia aos não poderosos que abdicassem de coisas em nome de algum ideal sobrenatural que na prática era apenas um estratagema para que os poderosos defendessem seus interesses. Nesse sentido, Bentham ofereceu um novo fundamento para a moral, livre de abstrações, como direitos humanos, liberdade e conceitos religiosos, como culpa, pecado e sacrifício.
Conforme o trecho que abre este artigo, a medida da justeza de uma lei ou conjunto de leis não é se ela está de acordo com algum mito religioso ou ideal filosófico, mas uma medida quantitativa. Lei boa é aquela que permite o maior número possível de pessoas na sociedade gozando da maior felicidade possível. E a felicidade em si também é sujeita à mensuração, não tendo nada de etéreo: ela é a ausência de dor ou a existência de prazer, de forma que no cômputo geral o saldo seja positivo, ou seja, a soma dos prazeres seja maior do que a das dores.
Fundando a moral e o direito em uma utilidade quantificável e não na religião ou na filosofia, Bentham considerava que a aplicação da lei não deveria ser um ato de vingança pelo crime cometido, mas um instrumento de prevenção do crime. Daí ele ser contra punições severas, que à sua época continuavam bastante comuns, já que a pena de morte era aplicada a toda sorte de condutas delitivas, desde assassinatos até roubos. Se os preceitos morais e legais não têm origem religiosa, para quê castigos severos como mostra de lealdade a alguma divindade cuja autoridade havia sido desafiada? Bastava uma punição que garantisse a estabilidade e a segurança da sociedade pelo seu efeito dissuasório. Afinal, era só em uma sociedade estável e segura que a felicidade do maior número seria factível.
É por isso que, sob a ótica utilitarista de Bentham, o sacrifício que o Coronel Chabert faz em prol da esposa é absurdo. Este gesto de renúncia de Hyacinthe a seus direitos não aumenta o total de felicidade disponível na sociedade, pois leva ao florescimento de uma pessoa e à aniquilação de outra. Esse amor desprendido de Chabert que dava sentido à vida dele a ponto de ele não se importar com seu conforto material, não se encaixa no esquema de cálculos egoístas de Bentham. Aliás, essa era a principal crítica que se fez à doutrina utilitarista: ela não considerava ou negligenciava uma parte considerável da experiência humana – o amor romântico ou dos pais em relação aos filhos, o sacrifício individual, a ajuda mútua, a busca da beleza corporificada na arte.
E no entanto, como não elogiar uma doutrina que desmascarava as artimanhas daqueles que queriam manter seus privilégios? Rose, para dissuadir Chabert de reclamar seus direitos, invocou o amor que ele tinha em seu coração e o sacrifício que ele faria em nome desse amor como coisas nobres, mas ela mesma não estava disposta a fazer sacrifício nenhum, como aliás, nenhuma pessoa com poder está. Em última análise, para os utilitaristas, o único sacrifício que se pode legitimamente pedir a um indivíduo é que sua busca pela felicidade não atrapalhe a busca da felicidade por outros indivíduos.
Prezados leitores, Balzac, como arguto observador da sociedade de sua época, que se aburguesava a passos rápidos, mostrou o advento de uma nova ordem moral representada pela condessa Ferraud. A honra, a palavra dada, o sacrifício, o amor cristão eram substituídos pelo cálculo material, pela relações mediadas pela lei, pela fé dos notários que preparavam documentos e pelo dinheiro. Por outro lado, a aniquilação de Chabert mostra os limites da moral utilitarista: pois se o indivíduo é todo egoísmo e ignorância, sua felicidade será sempre obtida em detrimento dos outros e a utilidade total não aumentará.
Assim, até para que o utilitarismo possa ter um bom resultado pratico em termos daquilo a que ele se propõe, é preciso seguir o velho conselho de Sócrates: conheça-se a ti mesmo, informe-se, pese as repercussões dos seus atos sobre a sociedade e faça um cálculo equilibrado do que é sua felicidade, considerando o curto prazo e o longo prazo. Sem sacrifícios exagerados, mas também sem egoísmos exagerados. Nem tanto a Rose, nem tanto a Hyacinthe, muito pelo contrário…