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Mídias sociais para quê?

Posted by on 03/01/2025

Enquanto Orwell teme uma sociedade controlada pela falta de informação, Huxley desconfia de uma sociedade em que o excesso de diversão e de informações insignificantes leva à passividade.

Trecho do podcast “Voix Philosophiques” comentando as ideais do educador americano Neil Postman (1931-2003) veiculados em seu livro “Amusing Ourselves to Death” de 1985

Huxley mostrava uma sociedade do futuro em que a tecnologia reinava suprema, mantendo a humanidade em conforto físico sem conhecimento de nenhuma necessidade e de nenhuma dor, mas também sem liberdade, beleza ou criatividade, e privada a todo momento de uma experiência pessoal única.

Trecho do verbete “Concepções da tecnologia” da edição de 1975 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, felizmente as festas de fim de ano se foram. Não é preciso mais mandar mensagens de Feliz Natal e Feliz Ano Novo para ninguém e nem responder às mensagens ou criar algum cartão digital com sua foto e suas felicitações. Em um dos grupos do qual participo no WhatsApp, um dos membros postou uma mensagem budista em inglês. Ela quis ser original e refinada, mas a mensagem era tão longa que nem li. Também não assisto aos vídeos com palavras edificantes sobre o significado do novo ano e sobre a importância dos verdadeiros sentimentos e das verdadeiras riquezas, que claro, não são nunca os presentes trocados nesta época do ano, mas o amor, a amizade, a espiritualidade.

    Não importa que as pessoas que repetem esse blá blá blá todo muitas vezes lembrem do recipiente da mensagem apenas uma vez por ano. O importante é a maravilhosa intenção de se comunicar, de estabelecer o contato virtual, que cada vez mais substitui o contato físico das pessoas. Todo esse conteúdo transmitido em dezembro, cheio de clichês e de boas intenções toma um tempo enorme daqueles que criam e daqueles que recebem as mensagens. Quem não responde é grosso e indelicado. É preciso gravar um áudio, escrever alguma coisa para mostrar-se pertencente à mesma comunidade digital de arautos de todas as virtudes possíveis que possam ser expressas em palavras. Admirável mundo novo, em que as relações humanas são não só mediadas como viabilizadas pela tecnologia e por isso viram um simulacro.

    Admirável mundo novo é o nome do livro do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), que em pleno século XX mostrou-se profético sobre o lado negro da tecnologia. Conforme o trecho que abre este artigo, a tecnologia possibilitaria ao homem satisfazer suas necessidades físicas ao ponto de fazê-lo atingir um máximo de bem-estar material, isto é, estaria sempre aquecido, bem nutrido e livre de doenças. Ao mesmo tempo, a criação dessa zona de conforto permanente levaria a um embotamento dos sentidos e da consciência, pois privaria o ser humano da motivação para criar e atingir a transcendência como maneira de escapar de uma realidade material miserável. Para Huxley, a arte, a religião, a literatura, a ética eram todos empreendimentos que nasciam da insatisfação do homem com sua vida tal como ela era. Em não havendo motivo de queixa a respeito de uma vida confortável e tranquila, não haveria por que buscar alguma realização intelectual, estética ou moral.

    É por essa visão do que a tecnologia poderia proporcionar ao homem em termos de prazer material que Neil Postman considera Aldous Huxley muito mais relevante para explicar o mundo moderno do que George Orwell (1903-1950), o escritor inglês autor de 1984. Em seu livro sobre uma distopia totalitária em que a língua oficial, INGSOC, tem um vocabulário limitado para inviabilizar o pensamento das pessoas, George Orwell alertou sobre o perigo do totalitarismo. Privado de informações sobre a realidade e privado do instrumento do raciocínio pela imposição da INGSOC, o homem se torna incapaz de resistir à opressão do BIG BROTHER, que está sempre vigiando seus passos, controlando o que ele fala e faz.

    Ao contrário, na distopia hedonista mostrada em Admirável Mundo Novo, o controle é exercido não pela privação, mas pela abundância. Conforme o trecho que abre este artigo, a tecnologia proporciona uma abundância de prazeres e de informações ao ponto de levar o indivíduo à indiferença, pois o excesso prejudica a capacidade de discernimento, de separar o que é importante do que é irrelevante. Se tudo dá prazer, conforto e estamos sempre cientes de tudo porque nada nos é negado no mundo material então nada tem valor. Nesse sentido, Postman considera o alerta dado por uHuxleyHuxley sobre o uso da tecnologia para nos saciar mais premonitório da era da comunicação em massa e dos seus efeitos sobre a decadência cultural e civilizacional do que o alerta dado por George Orwell sobre o uso da tecnologia para nos reprimir.

    A história do século XX mostrou que o totalitarismo à la BIG BROTHER acaba desmoronando porque mais cedo ou mais tarde a realidade bate à porta dos regimes que procuram escondê-la, no caso a riqueza proporcionada pelo capitalismo de mercado em contraposição à escassez de bens de consumo proporcionada pelo socialismo. A história do século XXI tem mostrado até agora, por enquanto, que o excesso de prazeres e de informação acaba tirando o valor de tudo e nivelando tudo por baixo. As mensagens se tornam clichês, o conteúdo veiculado carece de sentido porque é repetido à exaustão e o mais importante é prender a atenção do receptor, fazê-lo rir ou chorar por uns instantes, entretê-lo, mais do que informá-lo de alguma maneira significativa, isto é, que o leve à ação.

    Os cortes de Pablo Marçal, produzidos intensamente na eleição à prefeitura de São Paulo em 2024 e que quase levaram o candidato ao segundo turno, são evidência desse mínimo denominador comum: já que nenhuma proposta política é séria no sentido de ser passível de implementação na prática, basta criar factóides a serem consumidos nas mídias sociais, como um insulto farsesco, uma cadeirada, um tapa na cara para sobressair-se e convencer o eleitor.

    Prezados leitores, Aldous Huxley previu que o homem iria chafurdar nos excessos proporcionados pela tecnologia. Aproveitemos os vídeos do TikTok, as mensagens inspiradoras, os desenhos engraçados para nos entretermos e vivermos o presente, porque nesse admirável mundo novo o amanhã é uma quimera e não tem valor nenhum. Sejamos felizes e se todos os vídeos, mensagens e desenhos forem destruídos por uma hecatombe nuclear ou por um meteorito, o que importa se não deixarmos traço da nossa presença na Terra? Com ou sem cultura, com ou sem legado civilizacional, o importante é que comemos bem, não passamos frio e passamos o tempo agradavelmente de olho na tela do celular.

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