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Palavras para quê?

Posted by on 19/12/2024

A edição 2024 da mais completa e aprofundada pesquisa sobre os hábitos de leitura do brasileiro foi lançada nesta terça (19) com a informação de que nos últimos quatro anos houve uma redução de 6,7 milhões de leitores no país. Pela primeira vez na série histórica da pesquisa, a proporção de não-leitores é maior do que a de leitores na população brasileira: 53% das pessoas não leram nem parte de um livro – impresso ou digital – de qualquer gênero, incluindo didáticos, bíblia e religiosos, nos três meses anteriores à pesquisa.

Trecho retirado do artigo “Mais da metade dos brasileiros não lê livros”, aponta pesquisa, publicado no site da Câmara Brasileira do Livro sobre a 6ª Edição da Pesquisa Retratos da Leitura

Senhor Inspetor, a cabeça de um escritor talvez seja diferente das cabeças que o senhor está acostumado a vasculhar. Para um escritor, a palavra escrita é a realidade. […] Nós, escritores, trabalhamos bem com estereótipos verbais, a realidade só existe se houver uma palavra que a defina.

Trecho retirado do romance Bufo & Spalllanzani, do escritor Rubem Fonseca (1925-2020)

Mais preciso do que Roscelin, ele observava que predicamos uma palavra não como uma ocorrência, mas como tendo significado. Os universais surgem das semelhanças entre as coisas, mas uma semelhança não é em si uma coisa, como o realismo suponha de maneira equivocada.

Trecho retirado do livro “The Wisdom of the West”, do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), discorrendo sobre as ideias de Pierre Abélard (1079-1142), teólogo e filósofo escolástico francês

A literatura atesta assim a realidade social e econômica por refração e por metáfora, registrando as repercussões dos acontecimentos históricos e dos grandes problemas sociais em um nível individual e mítico: é a maneira pela qual o testemunho literário vive e não se cristaliza como ideologia, isto é, como um esquema morto.

Trecho retirado do livro “La Utopía Arcaica”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936-)

    Prezados leitores, vocês conhecem a história de Abelardo e Heloísa? Professor em Paris, Abelardo dava aulas para a sobrinha do cônego Fulbert, vigário geral da Catedral de Notre Dame. Heloísa de Argenteuil (1090-1164) tinha 17 anos e seu professor era 20 anos mais velho. Pintou um clima entre os dois, que levou à consumação sexual e à gravidez de Heloísa. Conta a história que o tio da moça,  enfurecido, mandou castrar Abelardo e ordenou os dois a se recolherem em instituições religiosas. Heloísa teve um filho, Astrolábio (116-1171), tornando-se posteriormente abadessa do convento de Argenteuil. Abelardo tornou-se monge e continuou a dar aulas. Aparentemente nunca mais se viram, mas continuaram a trocar cartas, que hoje podem ser lidas. O quanto e em que partes foram adulteradas ninguém pode dizer com certeza. De qualquer forma, elas eternizam uma trágica história de amor.

    A razão por que menciono o casal francês da Idade Média é que Abelardo tomou parte em uma das principais polêmicas filosóficas da época, a disputa entre nominalistas e realistas. Seguindo o idealismo de Platão, os realistas defendiam que os universais, isto é, os termos gerais que representavam uma recorrência ou um princípio de agrupamento ou classificação, eram coisas. Já os nominalistas, invocando Aristóteles, postulavam que os universais eram simplesmente nomes. Conforme o trecho que abre este artigo, Abelardo filiava-se à corrente dos nominallstas: os universais expressam as semelhanças entre as coisas, mas não são coisas, os referentes desses termos gerais não existem no mundo exterior, apenas como conceitos mentais que ajudam o homem a entender o mundo. O que existe na realidade são coisas das quais extraímos características comuns, abstraindo a miríade de características individuais delas.

    À luz dessa explicação, fica mais fácil entender as palavras de Ivan Canabrava ditas ao inspetor Guedes, que investiga a morte de Delfina Delamare no livro Bufo & Spallanzani, citado na abertura deste artigo e escrito por Rubem Fonseca, ele próprio um policial na década de 1950 no Rio de Janeiro. Para um escritor, a palavra escrita é a realidade no sentido de que esta só se torna inteligível, isto é, presente na mente do indivíduo, se ela for classificada, categorizada, enquadrada, definida por uma palavra, do contrário, ela é um mero borrão, uma sombra indistinta, não perceptível pelo homem. Independentemente se a palavra é a coisa em si ou um conceito mental, ela presentifica a realidade para aquele que a utiliza, torna a realidade mais nítida, clara, livre dos infinitos detalhes que confundem e não explicam nada, como diria o outro Abelardo, o Barbosa, dito Chacrinha (1917-1988), cujo bordão era “eu vim para confundir, não para explicar”.

    Se o escritor usa a palavra para presentificar a realidade na sua mente, a palavra acaba substituindo a realidade. A palavra não é só usada para entender a realidade, mas para criar um mundo paralelo, daí que ela ascende à condição de mito, conforme explica Mario Vargas Llosa no trecho que abre este artigo. A literatura, palavra escrita, é antes de tudo uma narrativa mítica, uma história fictícia que em sendo inventada na mente do escritor descola-se da realidade social e econômica que lhe serviu de inspiração. Para o escritor peruano, se o literato permanecer muito preocupado em ser fiel à realidade social e econômica, atentando para todas as suas particularidades, ele vai se tornar um ideólogo, isto é um veiculador de ideias sobre como ele vê a realidade. A verdadeira literatura não explica a realidade, mesmo porque ela não consegue abarcá-la em sua totalidade, ela tece uma narrativa totalmente independente do mundo das coisas. Tal narrativa cria sua própria teia de significados pela relação das palavras entre si, o que acaba iluminando aquela realidade da qual ela se desprendeu, mostrando-a sob um novo prisma.

    Entendimento e desprendimento da realidade, logos e mito, a literatura, veiculada pelos livros, nos faz mais alertas sobre o mundo que nos cerca e ao mesmo tempo nos permite sonhar com outros mundos possíveis. Uma pena que nós, brasileiros, não atentemos para a utilidade dupla da literatura. Conforme o artigo citado na abertura deste artigo, nos últimos quatro anos houve uma diminuição no número de leitores entre os brasileiros alfabetizados, fato constatado pela pesquisa realizada em 208 municípios. O resultado parece mostrar que nós consideramos a palavra escrita enfadonha e ininteligível, independentemente do meio em que seja veiculada, digital ou físico.

    Prezados leitores, de Abelardo na França do século XI, ao Ivan Canabrava do século XX no Rio de Janeiro, passando por Vargas Llosa no Peru, todos celebraram a palavra em suas múltiplas dimensões, cognitiva, mítica, sensorial e por aí vai. Coisa ou construto mental, realidade ou ficção, ela é a nossa janela para o mundo, nosso meio de interface com ele. Oxalá que o ser humano possa explorar essa ferramenta até o final do nosso percurso na Terra, mesmo que não seja no Brasil, mas alhures. Nossa saúde mental e espiritual agradece.

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