Certamente, à época em que a mulher comprava e descascava ela mesma seus legumes, aprontava a carne e cozinhava o ragu durante várias horas, uma relação tenra e nutritiva poderia se desenvolver; as evoluções dos condicionamentos alimentares haviam levado ao esquecimento dessa sensação que, além disso, Huysmans asseverava com franqueza, era uma pífia compensação para a perda dos prazeres carnais. Ele mesmo, em sua própria vida, não tinha de jeito nenhum coabitado com uma dessas mulheres de “panela no fogo”, as únicas que podem, de acordo com Baudelaire, juntamente com as “garotas”, ser convenientes ao literato – observação ainda mais justa considerando que a filha pode perfeitamente, com o passar dos anos, se transformar em mulher “panela no fogo”, que é mesmo seu desejo secreto e sua tendência natural.
Trecho retirado do livro “Soumission” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- )
Ela era só sentimento e nenhum intelecto, exceto pela sabedoria que a natureza dá à mulher para lidar com os homens. “Josefina”, ele dizia a ela, “você tem um grande coração e uma cabeça fraca.” Ele raramente deixava que ela falasse de política, e quando ela insistia, ele logo esquecia suas ideias. Mas ele lhe era grato pelo ardor sensual dos seus abraços, pela “doçura infalível do seu temperamento”, e pela modéstia e graça com as quais ela cumpria suas muitas funções como imperatriz.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Marie-Josèphe Tascher de la Pagerie (1763-1814), primeira esposa de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e imperatriz dos franceses de 1804 a 1809
O domínio das empresas ainda é masculino. As mulheres ainda estão na gerência, mas não na diretoria. Isso traz questões desde desigualdade salarial até assédio. Em alguns casos, elas não se sentem à vontade nesses ambientes e pedem demissão, mas também há a questão da sobrevivência…
Trecho retirado do artigo “Igualdade em marcha lenta – Um ano após a lei entrar em vigor, diferença salarial entre homens fica praticamente estagnada”, publicado no jornal O Globo em 24 de novembro
Prezados leitores, há duas semanas falei sobre mulheres otárias, isto é, mulheres que se sacrificam, isto é que preferem sofrer a ver as pessoas sofrerem e que em assim fazendo, acabam tendo um impacto positivo sobre a sociedade, em detrimento de sua própria vida. Falei especificamente da nossa primeira imperatriz Leopoldina (1797-1826), que foi uma das artífices da Independência do Brasil e garantiu a continuação da dinastia, dando à luz o futuro D. Pedro II (1825-1891). Em contraponto a ela estava a amante de D. Pedro I (1798-1834), Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), que se tornou uma mulher rica por causa de seu relacionamento com o imperador, relacionamento este que, por ser escancarado, comprometeu em muito a credibilidade da incipiente monarquia brasileira. Nesta semana, falarei de Josephine, a primeira mulher de Napoleão, que fica num meio termo entre esses dois polos: foi esperta para sobreviver, mas não de maneira prejudicial a outros.
Nascida na Martinica, Joséphine casa-se com o visconde de Beauharnais em 1779, que é guilhotinado em 1794. Ela escapa do mesmo destino por pouco, quando o regime do Terror acaba. O que uma viúva com dois filhos pequenos poderia fazer para sustentá-los? A crioula torna-se amante de Barras (1755-1829), um dos membros do Diretório que governa a França depois do Terror e Barras, cansado dela, a passa para as mãos de Napoleão, um general então em ascensão, com o qual ela se casa em 1796.
Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Joséphine usou como estratégia de sobrevivência agradar Napoleão, isto é satisfazê-lo sexualmente sem pretender dar palpites sobre assuntos de governo. Além das carícias, a martinicana encaixava-se no estereótipo que Napoleão tinha de uma mulher, um ser emotivo que tinha o cérebro imaturo de uma criança. Ela chorava, desmaiava e com seu jeito gentil e indolente conseguia tudo o que queria do mais despótico e voluntarioso dos homens: ele lhe dava uma pensão anual de 600.000 francos, mais 120.000 para suas obras de caridade, e apesar de espernear pagava todas as dívidas que a esposa fazia comprando joias e roupas.
O desempenho do papel de fêmea doce e carinhosa que não se mete nos assuntos do universo masculino, eis o segredo de Joséphine para que em agradando Napoleão este satisfizesse suas necessidades e desejos. No entanto a crioula de olhos verdes tinha um sério defeito: seis anos mais velha que seu esposo, ela não podia mais engravidar e isso foi razão suficiente para que Napoleão a repudiasse para casar-se com Maria Luísa (1791-1847), a irmão mais velha de nossa imperatriz Leopoldina que em 1809 estava no florescer dos 18 anos e portanto, apta a ter filhos. E assim Joséphine foi posta de lado, sem que, no entanto, Napoleão deixasse de prover uma pensão a ela e lhe desse a propriedade do castelo de Malmaison.
Mais de duzentos anos depois e esta mulher que adota como lema fazer de tudo para agradar o homem está no imaginário do escritor Michel Houellebecq, que a intitula mulher da “panela no fogo”. Conforme o trecho que abre este artigo, é a mulher perfeita para um escritor: ela faz comida, proporciona prazeres sensoriais a um homem quando os prazeres carnais já não estão tão disponíveis devido à idade, cria um ambiente doméstico propício a que o literato possa dar expressão integral a seu intelecto. Será que esse ideal de feminilidade está tão introjetado na mente masculina que é difícil aceitar qualquer outro papel das mulheres que fuja à submissão?
O artigo citado na abertura deste artigo mostra que apesar da lei vigente desde novembro de 2023, que prevê a igualdade salarial de gênero no Brasil, há uma diferença de 19% entre o salário de homens e mulheres, número este estagnado em relação àquele de 2023, de 20%. Há dois problemas: em primeiro lugar, mesmo quando mulheres e homens exercem a mesma função, eles ganham mais do que elas; em segundo lugar, segundo a empresária Ana Fontes, presidente da Rede Mulher Empreendedora, as mulheres raramente ocupam os cargos mais altos, chegando quase sempre no máximo a gerentes. Por que será que as mulheres não se sentem à vontade no ambiente de trabalho? Será porque elas têm esse hábito de agradar, ser doce, evitar conflitos e isso impede que elas saibam agir no mundo da competição corporativa? Ou será que é porque os homens impõem esse modo submisso de ser às mulheres como modo de eliminar a concorrência e levar a mulher a continuar a querer agradar os homens?
Prezadas leitoras, qual será a melhor estratégia para nos conduzirmos no mundo? Ser como Joséphine e ser aquilo que o homem espera de nós para que ele nos sustente ou sermos independentes e desagradáveis para defender nossos interesses, na disputa de recursos com os homens? Submissão ou conflito aberto? A cada uma a liberdade de decidir de acordo com suas próprias inclinações, levando em conta suas chances de sobreviver em um regime ou outro, de acordo com suas características físicas, morais e intelectuais. Para as que queiram, panelas no fogo, para as outras as intrigas do mundo corporativo. Seja agradando como Joséphine, seja disputando, como as mulheres entrevistadas pelo jornal O Globo que buscam justiça no mercado de trabalho, as mulheres sempre estarão em relação dialética com o sexo masculino. Vive la diffèrence!