Em relação a mim, eu admito que eu conheci apenas um Deus – o Deus de todo o mundo e da justiça… O homem no campo acrescenta a essa concepção… porque sua juventude, sua masculinidade e sua velhice devem ao padre seus pequenos momentos de felicidade… Deixe-o com suas ilusões. Ensine-o se quiser… mas não deixe que os pobres tenham medo de que possam perder a única coisa que os ligam à vida.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando George Jacques Danton (1759-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa
O ateísmo é aristocrático. A ideia de um grande Ser que vela pela inocência e pune o crime triunfante é basicamente a ideia do povo […] Essa noção […] liga-se somente a ideia de um Poder incompreensível, do terror dos malfeitores, o esteio e conforto da virtude.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Maximilien de Robespierre (1758-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa
De maneira mais abrangente, este relatório também descreve os impactos em cascata que levam a mortes indiretas, causados pelas operações militares de Israel em Gaza e na Cisjordânia. Ele examina o impacto sobre a saúde da população causado pela destruição da infraestrutura pública, das fontes de subsistência, pelo acesso reduzido a cuidados de saúde, à água e ao saneamento e pelos danos ambientais. Por exemplo, 96% da população de Gaza (2,15 milhões de pessoas) enfrenta níveis agudos de insegurança alimentar. De acordo com a carta de 2 de outubro de 2024 apresentada ao Presidente Biden por um grupo de médicos americanos, 62.413 pessoas em Gaza morreram de inanição.
Trecho retirado do Resumo do relatório intitulado “The Human Toll: Indirect Deaths from War in Gaza and the West Bank, October 7, 2023 Forward” publicado pelo Watson Institute for International & Public Affairs da Universidade Brown
Prezados leitores, venho abordando a Revolução Francesa ao longo das últimas semanas. Na primeira semana de outubro, em “Pontos de inflexão – os paralelogramos de Gibbon”, falei sobre o conjunto de fatores que presentes concomitantemente criaram as condições suficientes para sua eclosão. Na semana passada, em “Onde estão os novos porteiros”, falei como a exploração de um veículo relativamente novo de comunicação, a imprensa escrita, foi responsável pela criação das narrativas que sustentaram o movimento revolucionário, a luta dos bons, o “povo”, contra os maus, representados basicamente pela nobreza e pelo clero, que gozavam de privilégios seculares. Nesta semana, retomarei essa dicotomia para explorar as visões de mundo que se digladiavam no século XVIII e lançar luz sobre nossas próprias dicotomias, em pleno século XXI.
É verdade que havia diferentes grupos sociais que disputaram o poder na França desde 1789 até a tomada do poder por Napoleão em 1799, os quais tinham diferentes visões sobre como organizar as instituições econômicas e políticas. No entanto, ignorando as nuances das respectivas teorias, podemos com certeza dividir a sociedade francesa do final do século XVIII em dois campos ideológicos. Um deles, ligado às tradições, considerava que a fé religiosa era no final das contas o único apoio que o indivíduo tinha vivendo em um mundo ininteligível, sem significado e trágico. O outro, aberto à experimentação, considerava que a religião era uma superstição que atrapalhava o caminho rumo à razão e à liberdade.
Assim, para os experimentalistas revolucionários, a combinação da razão e da liberdade permitiria tentar novos modos de organização da sociedade que estabeleceriam uma nova ética nas relações humanas, não fundada no medo das coisas invisíveis e na esperança vã de uma vida eterna melhor, mas na busca pela diminuição do sofrimento das pessoas e pelo aumento da felicidade. Uma moral racional, livre de preconceitos e de noções de superioridade e de inferioridade irredutíveis trariam a igualdade, a justiça e, portanto, melhoraria a vida da maioria das pessoas.
Ora, esse caminho rumo ao paraíso na terra era ceifado de dificuldades, pois não havia escolhas fáceis. No campo econômico era preciso garantir a todos que pudessem comer e para isso que o preço dos alimentos fosse acessível para a população mais pobre. O que fazer? Estabelecer preços máximos para os produtos? Se assim fosse feito, os agricultores não teriam estímulo para produzir. Por outro lado, se os preços fossem liberados, os comerciantes poderiam auferir grandes lucros se retivessem as mercadorias para vendê-las no futuro a preços maiores, quando a demanda fosse maior. Num e noutro caso, a decisão a ser tomada para enfrentar o problema da oferta e da demanda e de como equilibrá-las implicava enfatizar um aspecto em detrimento do outro.
Um governo de inclinação burguesa liberaria os preços para incentivar a produção e a criação de riquezas. Um governo de inclinação popular controlaria os preços para diminuir as desigualdades criadoras de ressentimentos. Seria possível destrinchar o problema apelando à razão? Haveria uma única razão, imparcial, objetiva, unívoca que viabilizasse uma resposta categórica? Ou haveria uma ponderação dos interesses em jogo e no final das contas uma decisão arbitrária sobre que interesses privilegiar com base na correlação de forças políticas?
Tanto Danton, que foi ministro da Justiça e membro do Conselho Executivo de agosto de 1792 até 1793, quanto Robespierre, o principal nome do Comitê de Salvação Publica a partir de julho de 1793 até sua execução em julho de 1794 reconheciam que na prática o reino da prosperidade para todos que tornaria a religião inútil não era algo simples de ser conquistado. Daí as observações desses dois homens sobre a função da religião, citadas na abertura deste artigo. Se as desigualdades e as injustiças, o sofrimento, o trabalho duro, a doença não podem ser eliminados da face da Terra, é preciso crer que em outra dimensão um Ser com poderes absolutos punirá os maus e recompensará os bons. Do contrário, como ter motivação para viver se o indivíduo, por sua posição na escala social e econômica é vítima desses males constantemente? Não crer em Deus é um luxo dos privilegiados, que têm mais condições materiais de remediar os sofrimentos que os acometem e portanto não precisam recorrer a entidades sobrenaturais que façam o serviço de justiçamento que é impossível de ser concretizado no mundo real.
É neste ponto que salto três séculos, dos sans-culottes que sofriam com a carestia na França do século XVIII, para os palestinos, que estão sendo lentamente dizimados, em pleno século XXI. O relatório cujo trecho é citado na abertura deste artigo descreve os detalhes da exterminação gradual e segura, causada pelo bloqueio de ajuda humanitária, pela destruição das redes de esgoto e de abastecimento de água, pela destruição dos hospitais, pela proliferação de doenças causadas pela sujeira e pelo enfraquecimento do sistema imunológico devido à falta de comida. No século XXI, os ideais iluministas da razão e da liberdade como veículos do progresso são veiculados pelo Direito Internacional. Afinal, é o Direito Internacional que estabelece regras de convivência entre os diferentes países para que um não tente impor sua vontade ao outro de maneira arbitrária, é o Direito Internacional que estabelece o modo como os países devem conduzir operações bélicas de maneira a minimizar danos a populações civis.
Ora, o direito internacional até agora falhou redondamente na guerra entre Israel de um lado, e Hamas e Hezbollah, de outro, que se iniciou em 7 de outubro. Civis estão sendo trucidados em nome do combate ao terrorismo islâmico e seu direito à integridade física está sendo constantemente solapado pelos bombardeios israelenses incessantes, pela dificuldade de atuação das equipes da Organização das Nações Unidas na Palestina. E por que o direito internacional falhou? Por que não é possível elaborarmos coletivamente um argumento racional para diminuir o sofrimento das pessoas e aumentar a felicidade geral de todos os que habitam a região? Será porque o Oriente Médio é palco de disputas geopolíticas que só levam a uma ponderação de interesses sem que seja possível chegar a uma conclusão imparcial sobre o que fazer? Será porque a religião é utilizada por um e por outro lado para motivar as pessoas e dar uma pátina de moralidade às disputas de poder entre fundamentalistas islâmicos e judeus?
Enquanto isso, prezados leitores, talvez diante da perspectiva de sofrimento infindável para os palestinos, seja melhor eles recorrerem ao conselho de Danton e se apegarem à única coisa que os liga à vida: a fé. Se a razão é inviável e não leva à justiça, à paz e à felicidade, é melhor que os palestinos, dormindo ao relento, passando fome e frio, morrendo lentamente sem cuidados médicos e fugindo das bombas sonhem com um Ser supremo que vingará os oprimidos.