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Pontos de inflexão: os paralelogramos de Gibbon

Posted by on 02/10/2024

Ele não via desígnio nenhum na história; os acontecimentos são o resultado de causas não direcionadas; são o paralelogramo de forças de diferentes origens que geram um resultado multifacetado. Em todo esse caleidoscópio de acontecimentos a natureza humana parece permanecer inalterada. A crueldade, o sofrimento e a injustiça sempre afetaram a humanidade, e sempre afetarão, porque eles estão gravados na natureza humana. “O homem tem muito mais a temer das paixões dos seus pares do que das convulsões dos elementos naturais.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794)

De fundamental importância foi o crescimento das classes médias em número, educação, ambição, riqueza e poder econômico; sua reivindicação de status político e social compatível com sua contribuição à vida da nação e às finanças do estado; e sua ansiedade ante a possibilidade de o tesouro tornar os títulos públicos sem valor ao declarar falência. Subsidiariamente e utilizados por elas como ajuda e ameaça, eram a pobreza de milhões de camponeses implorando por alívio em relação às taxas, impostos e contribuições […] os crescentes padrões de administração esperados por cidadãos cujo intelecto havia sido afiado mais do que o de qualquer outro povo daquela época por escolas e salões, pela ciência, pela filosofia e pelo Iluminismo.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito das origens da Revolução Francesa

    Prezados leitores, estamos passando por momentos interessantes na cena internacional. Interessantes porque parecem estar abalando estruturas, lançando novos paradigmas geopolíticos. À parte a guerra na Ucrânia, que já dura desde 2022, agora temos a guerra no Oriente Médio, que se intensificou nas últimas semana. Será que as partes beligerantes, no caso Israel, a Palestina, o Líbano e o Irã vão bombardear-se mutuamente, vão lançar mísseis uns contra os outros por algum tempo e depois irão se aquietar? Será que as potências mundiais – Estados Unidos, China e Rússia – chegarão a um acordo de cavalheiros e irão exercer pressão em seus respectivos aliados para que não haja uma escalada de hostilidades que afete a economia e a paz mundiais? Será que as partes avaliarão os custos e benefícios do confronto, ponderarão seus respectivos pontos fortes e fracos e tomarão decisões com base em tais análises?  Ou será que irão agir motivados por seus valores éticos e religiosos fundamentais que os impelem a confrontar seus inimigos, custe o que custar? Será que haverá pressão das populações muçulmanas de países como Turquia, Jordânia e Egito para que seus respectivos governos tenham uma atuação mais forte em defesa dos Palestinos de Gaza?

    Ninguém sabe, nem os atores envolvidos nesse conflito sabem. E a razão da impossibilidade de prevermos o curso da história foi determinada pelo historiador inglês Edward Gibbon, autor do Declínio e Queda do Império Romano, conforme o trecho que abre este artigo. Os acontecimentos históricos são fruto de uma resultante de forças que atuam de maneira aleatória, sem que haja uma força invisível ou entidade sobrenatural que acione um ou outro fator conforme a finalidade última que essa força ou entidade tenha em mente. Assim, a história é uma caixa de surpresas, porque não é possível saber de antemão que força terá mais ou menos influência e se determinado fator desempenhará ou não algum papel no desenrolar dos acontecimentos. Como regra geral, Gibbon considerava que podemos apostar que as paixões e fraquezas humanas sempre desempenharão um papel, cuja intensidade se revelará no momento da ação. Esse conceito de paralelogramo pode ser aplicado com grande utilidade para entendermos a Revolução Francesa.

    Como mostram os Durant em seu capítulo intitulado “Anatomia da Revolução”, a força principal que impulsionou a deposição da monarquia, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, o Código Civil que estabeleceu a defesa da propriedade e a igualdade perante a lei, foi a classe média, conforme o trecho que abre este artigo. A classe social que abarcava advogados, médicos, banqueiros, comerciantes, industriais, administradores, cientistas, professores, artistas, autores e jornalistas considerava que ela era a principal responsável pela riqueza produzida na França e que eram suas economias que permitiam sustentar um Estado perdulário.

    Para a classe média, a nobreza recebia muito mais do que contribuía: gozava de pensões concedidas pelo rei e dos mais altos cargos na administração pública e militar; cobrava dos camponeses obrigações impostas no feudalismo e vigentes ainda no século XVIII; e conseguia de livrar da maior parte da carga tributária imposta pelo Estado por meio de subterfúgios. A contribuição da nobreza resumia-se às suas funções militares, pois há muito ela deixara de exercer suas funções tradicionais no campo, como a aplicação da justiça, a gestão agrícola, a criação de escolas, hospitais e instituições de caridade e a vigilância da população, funções cada vez mais exercidas pelo Estado. Sobre o clero, a opinião da classe média versada na literatura filosófica do Iluminismo não era melhor: seus membros eram os propagadores de uma teologia medieval e infantil.

    Diante disso, era preciso dar um choque de competência e dinamismo ao Estado que, em 1789, às vésperas da queda da Bastilha, tinha um déficit de 150 milhões de livres (o que equivaleria ao redor de 1 bilhão e 200 milhões de dólares americanos de hoje). Para isso, era preciso recrutar pessoas de talento, independentemente da origem social, de forma que o mérito fosse premiado e não o fato de a pessoa ter ou não determinado ancestral ilustre. Se o Estado francês continuasse a gastar muito mais do que arrecadava, ele poderia dar o calote naqueles que eram os seus grandes financiadores, a classe média que poupava e investia em títulos públicos.

    No entanto, paralelamente a essa grande força motriz da classe média descontente com o status quo, querendo mostrar seus talentos e ganhar prestígio social ascendendo aos altos cargos do governo restritos à nobreza, havia outro fator: o descontentamento do próprio povo isto é, dos artesãos, dos vendedores de rua, dos camponeses que em 1789 sofriam de insegurança alimentar devido a uma grande seca que afetou as plantações e a uma tempestade de granizo que arrasou terras em 1788, ao inverno de 1788-1789, o pior em 80 anos, e finalmente a enchentes torrenciais na primavera de 1789. O preço dos alimentos básicos disparou, o que causou fome, raiva, e motins, devidamente explorados pela classe média para derrubar o governo.

    Governo esse capitaneado por um rei, Luís XVI (1754-1793), que tinha boas intenções, queria ajudar o povo, mas não tinha nenhum talento para liderança. Sua vocação era ter sido chaveiro, mas a loteria genética o colocara no posto de herdeiro do trono do francês. Faltava-lhe autoconfiança, o que tornava difícil para ele tomar decisões e o levada a se deixar influenciar por sua esposa, Maria Antonieta (1755-1793), que gastava dinheiro em vestidos, em penteados de cabelo, em jogos de azar e em recompensar amigos por sua fidelidade.

    Descontentamento da classe média e do povo, desastres climáticos, rei indeciso, rainha exercendo influência nefasta sobre o rei que o tornava pior do que já era, abalando a credibilidade da monarquia: pronto, já temos um paralelogramo de forças! Atuando ao mesmo tempo, com intensidades diferentes, elas desencadearam a sucessão de eventos que levou à queda da monarquia, à execução do Rei e da Rainha, ao período do Terror, em que a guilhotina reinou soberana, matando a torto e direito quem se opusesse ao governo de Robespierre (1758-1794), ao período do Consulado e a ascensão de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

    Prezados leitores, em todo ponto de inflexão histórica, a lição de Edward Gibbon permanece válida: a história não tem uma moral, porque ninguém sabe para onde os acontecimentos caminham e portanto não é possível perceber nenhuma finalidade. Só sabemos de uma coisa: nunca haverá um único responsável pelos eventos, e assim, nunca haverá um único culpado e um único inocente. No século XVIII tínhamos Luís XVI, Maria Antonieta, Mirabeau (1749-1791), Lafayette (1757-1834), Robespierre, Danton (1759-1794), Napoleão. Hoje temos Benjamin Netanyahu, Vladimir Putin, Joe Biden, Xi Jinping, os líderes do Hamas e do Hezbollah, os israelenses que querem que os reféns feitos no dia 7 de outubro sejam resgatados e os muçulmanos do mundo todo que querem ver os palestinos pararem de sofrer.  Aguardemos o novo paralelogramo se formar e veremos qual será a força resultante. Ela poderá levar a uma nova ordem geopolítica mundial ou a um conflito nuclear que nos destruirá.

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