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A polícia secreta e outros meios alternativos

Posted by on 26/09/2024

Os filósofos tinham reconhecido que, tendo rejeitado os fundamentos teológicos da moralidade, eles estavam obrigados a achar outro fundamento, outro sistema de crenças que levaria os homens a se comportarem de maneira decente como cidadãos, maridos, esposas, pais e filhos. Mas eles não estavam de todo confiantes que o bicho homem poderia ser controlado sem um código moral sancionado de maneira sobrenatural. […] a indiferença em relação a assuntos religiosos, por mais inofensiva que pudesse ser em indivíduos esclarecidos e racionais, é fatal para a moral das massas.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Quão consolador para o filósofo – que lamenta os erros, os crimes, as injustiças que ainda poluem a Terra, e dos quais ele é frequentemente a vítima – é essa visão da raça humana, livre dos seus grilhões …. avançando com passo firme e seguro pelo caminho da verdade, da virtude e da felicidade! É a contemplação desse cenário que o recompensa por seus esforços em ajudar o progresso da razão e a defesa da liberdade.  

Trecho retirado do livro “Esquisse d’um tableau historique des progrés de l’esprit humain”, escrito pelo filósofo, matemático e economista francês Marie Jean Antoine Caritat, o Marquês de Condorcet (1743-1794)

A saúde mental de Huw Edwards pode ter sido um fator determinante que o livrou da prisão, disseram advogados ao Daily Mail online hoje. […] O homem de 63 anos foi condenado a seis meses de prisão com suspensão da pena por dois anos, depois de declarar-se culpado de três crimes consistentes na criação de fotografias indecentes.

Trecho de um artigo sobre o apresentador da BBC, Huw Edwards, publicado na versão online do jornal britânico Daily Mail em 16 de setembro

 

    Prezados leitores, vocês já ouviram falar de Huw Edwards? Ele é um jornalista e apresentador de TV que até abril de 2024 trabalhou na rede pública de televisão do Reino Unido, a BBC e comandava o principal jornal de notícias do canal britânico, o Jornal das 10 Horas. Nascido no País de Gales, foi Huw Edwards quem anunciou a morte da Rainha Elizabeth II, em setembro de 2022, por causa da credibilidade de que gozava, afinal o homem tinha um doutorado, obtido na Universidade do País de Gales, como resultado do seu estudo da história das capelas galesas no século XVIII. Enfim, um homem bem-sucedido, pai de cinco filhos com a mesma esposa, culto. E no entanto…

    Conforme o trecho que abre este artigo, em setembro ele foi condenado por receber fotos de crianças na internet, trocá-las pelo WhatsApp e fazer o download delas. São ofensas graves, por poderem ter efeitos de longo prazo sobre as crianças que são o objeto das imagens divulgadas amplamente nos canais virtuais por “apreciadores”. No entanto, Edwards teve a pena suspensa porque o juiz considerou que a saúde mental do William Bonner do Reino Unido pode ter afetado a sua tomada de decisões no momento em que o crime foi cometido. Em sua defesa, o galês alegou que sofre de depressão desde 2002 e em 2023 chegou a ser internado em hospital para tratar da doença. É verdade que os problemas mentais de Edwards nunca o impediram de ter uma carreira bem-sucedida na TV, de escrever sua tese de doutorado, de aprender a tocar órgão e tocar em uma igreja presbiteriana em Londres. Mas o juiz achou que eles eram graves o suficiente para servirem de atenuante dos crimes.

    Certa ou errada a decisão do juiz? Será que a conduta de Edwards não é totalmente culpável porque ele é vítima de doença mental? Se os juízes forem aceitar o argumento de que criminosos são vítimas à sua maneira como condenar alguém por algum crime? Não pretendo dar uma resposta final a essas perguntas, mesmo porque trata-se de escolhas legislativas e judiciárias a serem feitas em cada país, isto é, trata-se de elaborar códigos penais que estabeleçam determinadas circunstâncias atenuantes e de aplicar a lei penal da forma menos gravosa possível às vítimas de doenças. O que pretendo neste meu humilde espaço é retomar as discussões que foram travadas na Europa do século XVIII sobre os fundamentos da moral, discussões essas que têm repercussões até hoje, inclusive na atuação dos juízes ocidentais.

    Conforme o trecho que abre este artigo, os filósofos do Iluminismo, como Voltaire (1694-1778), haviam se insurgido contra a Igreja e o monopólio que ela tinha sobre as regras da boa conduta. Deixar que a Igreja decidisse o que era o bem e o mal era desastroso, porque ela fundamentava sua ética na religião e assim não dava margem a nenhuma discussão sobre se tais normas eram justas ou não, ou se elas contribuíam para a paz e a ordem na sociedade. Deus havia estabelecido as regras que a Igreja impunha aos cristãos e quem as desobedecesse teria castigo exemplar, sendo mandado ao Inferno, onde sofreria torturas constantes por seus pecados.

    Mesmo que tais regras fossem arbitrárias e muitas vezes baseadas em superstições negadas pelos fatos, a ética fundamentada na teologia apresentava uma grande vantagem: ela fazia de Deus a polícia secreta do Estado. Afinal, se o indivíduo temia a ira divina e as agruras sofridas pelos pecadores no lugar especialmente reservado a eles, ele mesmo faria um exame de consciência e deixaria de praticar o mal, ou já o tendo feito, se arrependeria e procuraria se emendar para se livrar da condenação às penas infernais.

    Daí que Voltaire admitia a necessidade da religião para as massas, pois a Polícia Secreta divina seria a melhor e talvez a única forma de controlar o comportamento da maioria das pessoas, cujo intelecto não era muito desenvolvido, o que as levava a serem naturalmente propensas a se deixarem levar por suas paixões e instintos. Para a minoria de homens que tinham a capacidade para o exercício da razão, as narrativas religiosas eram desnecessárias e contraproducentes, pois tolhiam sua liberdade de pensar e de atuar no mundo com base nas suas reflexões.

    Não admira que filósofos Iluministas otimistas como Condorcet vislumbrassem um futuro brilhante para ao menos parte da humanidade que podia livrar-se dos grilhões da religião. Conforme o trecho que abre este artigo, se a raça humana escolhesse exercitar sua razão para aumentar seu conhecimento, os homens seriam mais virtuosos e mais felizes: a injustiça, a opressão, a corrupção seriam eliminados, porque os maus atos são sempre fruto da ignorância e não de uma suposta condição de pecador do ser humano herdada de Adão e de Eva.

    À luz dessas explicações podemos ver que o fundamento da moral passou por uma revolução na Europa: ele deixou de ser a religião e passou a ser a razão. O homem não prestava mais contas a Deus e à Polícia Secreta consistente na sua consciência culpada de pecador. No máximo, ele prestava contas ao Estado, que elaborava e aplicava leis que idealmente eram elaboradas sobre princípios racionais, de modo a garantir o bem-estar da sociedade como um todo e seu desenvolvimento a longo prazo.

    Somos os herdeiros dessa tradição Iluminista, lançada no Ocidente por homens como Condorcet. Um homem que sente atração sexual por crianças e tem prazer em ver fotos delas como Huw Edwards não é mais punido por ser um pecador, um homem mal, como a religião nos ensinava. Ele é punido por ter causado dano a outras pessoas e perturbado a ordem social da qual todos dependem para atuar com liberdade rumo à prosperidade material e espiritual.

    Por outro lado, o que Voltaire diria de Huw Edwards? Ele pertenceria às massas que precisam da Policia Secreta divina ou da elite que pode valer-se do seu  juízo racional para optar pelo bom comportamento? Por que um homem educado como ele não agiu racionalmente, harmonizando seu intelecto com seu comportamento? Terá sido a depressão tão avassaladora que prejudicou seu tirocínio, justificando a decisão do juiz de suspender a pena? A partir de que ponto devemos considerar que uma doença mental impede o homem de controlar seus instintos e portanto, de concretizar o projeto racional de “verdade, virtude e felicidade” proposto por Condorcet em sua obra-prima, a última que escreveu? Se qualquer grau de doença mental afeta nossa capacidade cognitiva e de decisão, quão resiliente e digna de confiança é a razão tão cantada pelos philosophes do século XVIII?

    Prezados leitores, para quem não sabe, o otimista Condorcet, perseguido durante a Revolução Francesa por ser aristocrata, foi preso e acabou matando-se na prisão. Seu medo dos excessos que estavam sendo cometidos foi mais forte do que sua fé nas maravilhas que a liberdade e a razão poderiam operar. A Polícia Secreta se foi, ficou a Polícia do Estado e a nossa mente, com diferentes graus de sanidade. Que esta última possa seguir a trilha vislumbrada por Condorcet. Mesmo que não cheguemos ao destino final da felicidade pura no Elísio criado pela razão, que ao menos ela seja mais eficaz que a Polícia Secreta para fundamentar nosso comportamento ético.

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