A guerra que estou travando com a comunidade dos homens só é um delito se, conforme me assegurastes, eu não tiver sido expulso dela! […] Expulso é como eu chamo aquele a quem se priva a proteção das leis! […]pois é dessa proteção, para a prosperidade de meu comércio pacífico, que necessito; sim, é por causa dela que eu, com tudo o que adquiri, me refugiei nesta comunidade; e quem me priva de tal proteção está me enxotando para a barbárie do deserto […]
Trecho retirado do livro Michael Kohlhaas, do escritor alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), do diálogo do personagem com o fundador do Protestantismo, Martinho Lutero (1483-1546)
O sentido mais específico que Aristóteles dá à justiça, e do qual as formulações mais conhecidas derivam, é o de deixar de cometer a pleonexia, isto é, deixar de obter vantagem para si mesmo tomando aquilo que pertence a outro, seus bens, sua recompensa, seu cargo e coisas similares […]
Trecho retirado do livro “A Theory of Justice” do filósofo americano John Rawls (1921-2002)
Prezados leitores, talvez vocês já tenham ouvido falar do ator dinamarquês Mads Dittmann Mikkelsen (1965-). Em 2006, ele desempenhou o papel do vilão Le Chiffre em Casino Royale, um dos filmes do 007 em que James Bond é interpretado por Daniel Craig, e de 2013 a 2015 fez o famoso doutor Hannibal Lecter para a televisão, o psiquiatra que é um assassino em série. Paralelamente a essa carreira digamos, hollywoodiana, Mikkelsen atuou em alguns filmes históricos, em que ele desempenha personagens reais ou fictícios que têm algo em comum: a busca por justiça. Esses homens foram Michael Kohlhaas, um comerciante de cavalos do século XVI; Johann Friedrich Struensee (1737-1772), médico que se tornou amante da rainha Carolina Matilda da Dinamarca e tentou governar o país sob os princípios do Iluminismo, e Ludvig von Kahlen (1700-1774), que explorou a Jutlândia. Meu objetivo nesta semana é analisar que justiça é esta que buscavam, à luz dos ensinamentos de John Rawls.
Para tanto, será preciso primeiramente relembrar os fatos históricos a respeito dos respectivos personagens. Incluo Michael Kohlhaas nesse rol porque ele é baseado em um homem que existiu, Hans Kohlhase. Em viagem de negócios, um nobre exige-lhe um tributo arbitrário para que atravesse suas terras e também que deixe em garantia dois cavalos negros. Kohlhaas concorda a contragosto e encarrega um empregado seu para tomar conta dos cavalos até sua volta. Quando regressa, após descobrir que a cobrança era ilegal, o empregado havia sido quase morto e seus cavalos estavam irreconhecíveis de tão mal tratados. O comerciante então começa sua luta pela reparação do dano que o fidalgo lhe impõe.
Quanto a Struensee, aproveitando-se da influência que ele exerce sobre a rainha e do fato de que o rei da Dinamarca de então, Cristiano VII (1749-1808), era meio louco, o médico toma as rédeas do poder e começa a executar um projeto iluminista: abole a servidão, acaba com os abusos dos privilégios da nobreza, acaba com a censura à imprensa, proíbe a tortura judicial, cria escolas, cancela pensões e usa o dinheiro para criar fundações. Finalmente, Ludvig von Kahlen é um capitão reformado do Exército que quer utilizar sua pensão para praticar a agricultura na Jutlândia, área de terras devolutas, que pertenciam ao rei da Dinamarca. De posse da autorização régia para tentar fundar uma colônia agrícola na região, Ludvig crê que não terá problemas, pois ele está seguindo a lei. No entanto, ele se vê confrontado por um grande proprietário de terras local, Frederik De Schinkel, que faz tudo ao seu alcance para fazê-lo sair de lá, por bem ou por mal.
Essa breve descrição do que ocorreu na vida dos três personagens permite-nos perceber os contornos da luta pela justiça de cada um deles. Os três estão seguindo a lei, conforme a concebem: Kohlhaas presta queixa contra o fidalgo que maltratou seus cavalos porque se considera no direito de fazê-lo. Conforme o trecho que abre este artigo, seu ofício era o de comprar e vender cavalos e quem quer que provocasse dano em seus animais estava prejudicando sua capacidade de exercer sua atividade normalmente. Negar-lhe reparação do dano é impedi-lo de exercer seu papel profissional, é colocá-lo fora da comunidade dos homens que têm direitos e obrigações mútuas, pois sem sua identidade de comerciante de cavalos Kohlhaas se torna um pária na sociedade. Daí a necessidade que ele vê de buscar justiça: se as cortes, se o soberano não reconhecerem que o direito de Kohlhaas foi violado, o indivíduo é colocado fora da lei, pois não foi contemplado por ela.
Para o médico tornado ministro plenipotenciário, Struensee, seguir a lei é seguir seu ideário iluminista de emancipação do povo por meio da educação e da instituição de um regime em que os direitos e deveres são estabelecidos em bases racionais e não na base de privilégios de classe ancestrais. Da mesma forma, Ludvig von Kahlen, confia na igualdade perante a lei preconizada pelos filósofos da Era das Luzes, não podendo haver pessoas com menos ou mais direitos em virtude de sua posição social. Diante das investidas do rico proprietário de terras para expulsar alguém de uma terra que pertence ao rei e não ao latifundiário, Ludvig se sente injustiçado, pois não estava infringindo o direito de ninguém, apenas estava exercendo o seu próprio direito de criar uma colônia em um local em que muitos haviam tentado trabalhar e tinham fracassado. De Schinkel não tem o direito de se opor à pretensão de Ludvig, pois embora ele esteja na região há muito mais tempo, foi a Ludvig que foi concedido o direito de exploração da terra devoluta, não a ele.
Nesse sentido, tanto Frederik De Schinkel, que quer expulsar Ludvig von Kahlen da Jutlândia quanto o fidalgo que machuca os cavalos de Michael Kohlhaas a tal ponto que os torna imprestáveis, praticam a pleonexia, conforme o conceito aristotélico de justiça explicado por John Rawls na abertura deste artigo. De Schinkel pretende tirar de Kahlen algo que pertence a este, o direito de exploração de terras devolutas, o fidalgo tira de Kohlhaas o instrumento do seu ofício legitimamente exercido, os cavalos. Rawls explica em seu livro “A Theory of Justice” que a concepção de Aristóteles do “a cada um o que é seu” implica estabelecer quais as legítimas expectativas dos indivíduos dentro da sociedade, de acordo com as instituições que a suportam e que estabelecem os direitos e deveres de cada um. Se Michael Kohlhaas como comerciante de cavalos tinha direito a ter seus animais incólumes e se Ludvig von Kahlen, como empreendedor agrícola, tinha direito de plantar batatas na Jutlândia, isso significa que as ações do fidalgo e de Frederik De Schinkel contra eles eram injustas e mereciam ser combatidas, pois tiravam do indivíduo aquilo que era dele e de mais ninguém.
E à luta pela justiça se entregam os personagens interpretados por Mikkelsen, com consequências funestas. Kohlhaas, frustrado nas suas tentativas de obter reparação pelos meios legais e depois da morte da esposa, torna-se o chefe de um grupo e começa a fazer justiça com as próprias mãos, acabando por ser executado. Ludvig von Kahlen acaba abandonando sua colônia agrícola e torna-se um fora da lei ao libertar Ann Barbara, sua governanta e amante que havia assassinado Frederik De Schinkel, que a estuprara quando ela era sua serva. Struensee, que havia tentado executar seu projeto iluminista para tornar as leis do país menos arbitrárias, é derrubado pelos reacionários dinamarqueses, preso, torturado e acaba morto em condições de sofrimento intenso, por esquartejamento.
Prezados leitores, a lição da trajetória desses três personagens históricos, que lutaram por justiça e que pagaram um alto preço por isso, é que não basta ter legítimas expectativas, é preciso que os outros membros da sociedade as reconheçam e eles só o farão se tal reconhecimento for do interesse deles mesmos, como um quid pro quo, em que um reconhece o direito do outro para o outro fazer o mesmo por ele. Do contrário, os plutocratas em geral, sejam eles nobres ou simples latifundiários, farão de tudo para colocar seus oponentes no deserto daqueles sem direitos. Esperemos que Mads Dittmann Mikkelsen interprete ainda outro personagem histórico do norte da Europa que foi à luta para defender o que ele tinha o direito de considerar como seu, fossem cavalos ou brotos de batatas no solo.