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Relacionamentos para quê?

Posted by on 19/06/2024

Eles desafiavam as mulheres a descartar seus modismos e anquinhas, seus sentimentos e desmaios e piedade submissa, convocando-as a juntar-se a eles para compartilhar a vida excitante da mente emancipada e do homem errante.

Trecho retirado do livro “Rosseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre os proponentes do Sturm und Drang, movimento literário alemão do final do século XVIII, que teve entre seus participantes Goethe e Schiller

Seu conhecimento superior e força mental, ao invés de serem, como ele havia imaginado, um altar a ser consultado em todas as ocasiões, eram simplesmente colocados de lado em todas as questões práticas. […]Para Lydgate parecia que ele estava despendendo um mês após o outro sacrificando mais da metade das suas melhores intenções e suas melhores forças em prol da sua ternura por Rosamond; aturando as pequenas demandas e interrupções dela sem impaciência, e acima de tudo, aturando sem revelar nenhuma amargura a constatação com cada vez menos ilusões da superfície em branco e sem reflexo com que a mente dela apresentava-se ao ardor dele pelos fins mais impessoais  da sua profissão e de seus estudos científicos, um ardor que ele imaginara que a esposa ideal deve de alguma forma idolatrar como algo sublime. […] Rosamond sendo uma daquelas mulheres que acalentam a ideia de que cada homem que elas encontram teria preferido elas caso tal preferência não tivesse sido inútil.

Trecho do livro Middlemarch da escritora George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880)

    Prezados leitores, na semana passada, após várias semanas de ausência, eu lhes apresentei o Senhor Bulstrode, um rematado hipócrita cujo perfil a escritora George Eliot traça em seu romance Middlemarch para ilustrar sua visão de mundo, agnóstica que ela era: qual seja, a ideia de que o comportamento ético depende do caráter da pessoa e não da religião que ela professa, pois muitas vezes o discurso religioso só serve para justificar pelos artifícios de uma razão autocomplacente a crueldade, a mesquinharia e a ambição. Nesta semana, meu foco será em dois outros personagens, o doutor Lydgate e sua esposa Rosamond, pelos quais George Eliot mostra as sutilezas e as ambiguidades da sociedade patriarcal da época em que se passa o livro, a primeira metade do século XIX. Com isso ela nos dá sua visão desapaixonada do sexo feminino, de acordo com a qual as mulheres atuam em um contexto que as leva a agir de maneira específica de modo a atingir seus objetivos. Em assim fazendo, a escritora inglesa mostra como os relacionamentos humanos se desenvolvem na prática.

    A ascensão fulminante do feminismo nos países ocidentais na segunda metade do século XX consolidou uma visão crítica da sociedade dos séculos anteriores, ensinando-nos que as mulheres eram oprimidas pela sociedade patriarcal e não tinham maneira de expressar sua personalidade e desenvolver-se de maneira autônoma. Ora, a trajetória de Rosamond, ao lado do seu marido Lydgate, revela que a situação era bem mais complexa que este retrato em branco e preto dos oprimidos versus opressores. Lydgate é um cavalheiro que goza de reputação social em Middlemarch, onde ele resolve se instalar para atuar como médico. Sobrinho de um barão, portanto com conexões com a aristocracia, e tendo morado em Paris por algum tempo, ele chega à cidade cheio de autoconfiança e de ambições. Quer realizar uma prática médica diferente da comum, que insistia na prescrição de pílulas para toda e qualquer doença como meio de fidelizar os pacientes. Ele quer também construir um hospital para tratar de doenças infecciosas e o mais importante de tudo, quer dedicar-se à ciência combinando sua experiência ao lidar com os doentes com os estudo dos autores mais renomados e com experimentos por ele mesmo concebidos para fazer descobertas e assim contribuir para o progresso da humanidade.

    A princípio, ele consegue colocar esse projeto em prática, mas o comparecimento a festas na casa das famílias de Middlemarch coloca Lydgate em contato com Rosamond, filha de um industrial, portanto, uma mulher de menos prestígio social que ele, mas que é considerada a maior beldade da cidade e que havia frequentado uma escola para moças, onde aprendeu a ser educada, a cantar e a falar coisas agradáveis. O jovem e bem-apessoado médico flerta com a linda loira, mas não tem a intenção de casar logo, porque ele quer concentrar-se nos seus objetivos profissionais. Rosamond, ao contrário, está determinada a fisgá-lo como esposo, porque aos olhos dela ele seria o instrumento de sua ascensão social e da realização do sonho de morar em Londres e não ter mais contato com sua própria família modesta. A obstinação da moça tem sucesso: quando rumores começam a se espalhar de que Rosamond e Lydgate têm um relacionamento, o médico passa a evitar vê-la para não dar a entender que pretende casar, mas em um dia em que se encontram em uma festa, Rosamond chora e Lydgate ingenuamente toma isso como prova do amor que a moça sente por ele, quando na verdade era simplesmente o despeito de ela ver seu sonho de casamento estar indo para o brejo ante a reticência do seu alvo.

    Lydgate acaba cedendo e toma Rosamond como esposa. Conforme, o trecho que abre este artigo, ele via na beleza de Rosamond o sinal de um espírito sublime: o de uma mulher apaixonada pelo marido que o veneraria como mais forte, mais inteligente e mais sábio do que ela e que o obedeceria em tudo, ajudando-o a concretizar suas ambições profissionais ao proporcionar-lhe um lar agradável, preenchido pela doce voz e pela beleza física de uma mulher. No entanto, a loira mais cobiçada de Middlemarch estava longe deste ideal. Rosamond não compreendia os interesses intelectuais do esposo, que ela considerava esquisitos e inúteis, e começa a enfadar-se com ele, pois a conquista já estava feita, e seu ego exigia que ela fosse objeto da cobiça de outros homens. A preferência de Rosamond por divertir-se passa a prejudicar as atividades intelectuais de Lydgate, e como Rosamond só se interessa pelo marido na medida em que ele possa satisfazer os sonhos dela, Lydgate começa a perceber gradualmente que sua esposa em nada o ajudaria a tornar-se o grande cientista que ele gostaria de ser, o que mina gradativamente a autoconfiança que ele tinha ao chegar à cidade.

    O momento da verdade sobre o relacionamento do casal chega quando começam os problemas financeiros. Levando um estilo de vida que não condiz com os rendimentos que Lydgate consegue obter como médico que não receita pílulas milagrosas, as dívidas se acumulam. Lydgate tenta resolver o problema tomando as medidas mais racionais possíveis: penhorando bens e cortando despesas. Ele espera que sua esposa o obedeça, mas Rosamond é surda aos apelos dele, pois o que lhe importa acima de tudo é a reputação de que ela quer gozar na sociedade. Isso faz com que ela boicote de maneira sub-reptícia todos os esforços dele de lidar com os credores, o que o obriga a pedir dinheiro emprestado ao Sr. Bulstrode, com quem Lydgate trabalhava na construção do hospital. Bulstrode dá o dinheiro a Lydgate após este ter cuidado de um homem que chantageava Bulstrode ameaçando contar a todos o que sabia sobre o passado do paladino da moral em Middlemarch. O homem morre porque Bulstrode não lhe dá o remédio prescrito por Lydgate e quando todos na cidade acabam sabendo sobre as ações desonrosas de Bulstrode, eles chegam à conclusão de que o silêncio de Lydgate sobre a morte suspeita do chantageador foi comprado.

    Lydgate consegue pagar suas dívidas, mas sua reputação está em frangalhos, o que para Rosamond é insuportável. Ela exige a mudança para Londres e Lydgate atende ao pedido, apesar de sua vontade de continuar em Middlemarch trabalhando em prol do hospital e da ajuda de amigos que estão dispostos a asseverar a honestidade do médico. E por que Lydgate cede? No papel de cavalheiro casado que deve proteger sua esposa até o fim, ele se sente na obrigação de reparar os danos causados ao orgulho de Rosamond pelas dívidas e pelas relações com o famigerado Bulstrode. Assim, Rosamond consegue tudo o que sempre quis, mas a autora nos revela que Lydgate, apesar de ter ganho dinheiro em Londres como médico que receita remédios para gota, é um homem frustrado por não ter conseguido realizar seus sonhos. Ao longo dos anos, percebendo ter feito uma má escolha ao casar-se com a bela e vaidosa Rosamond, Lydgate dá vazão ao seu ressentimento acusando a esposa de ser um manjericão, isto é, uma planta que floresce no cérebro de um homem morto. Rosamond não se importa com essas acusações, pois jamais amou o marido e jamais percebeu o sacrifício que ele fez para agradá-la. Quando ele morre aos 50 anos e a deixa com quatro filhos e uma boa fortuna, ela logo casa-se de novo.

    A lição que tiramos do drama de Lydgate é que se o estereótipo da sociedade patriarcal é de que atrás de um grande homem existe uma grande mulher, o oposto também é verdadeiro: se uma mulher constrói um homem ela pode também o destruir, como Rosamond fez com seu marido, a quem ela usou como instrumento para suas ambições de ascensão social. Mas George Eliot é sutil o suficiente para mostrar os defeitos de Lydgate, que se deixou levar por uma paixão sexual e encantar-se por uma beleza oca, vazia de caráter ou de espiritualidade. Rosamond era mesquinha e seu prazer na vida era admirar-se no espelho, vendo seu próprio reflexo em tudo e todos. Mas Lydgate foi fraco e ingênuo ao se deixar enganar pela mulher que desempenha o papel da fêmea agradável, passiva, que se faz de frágil para alimentar a vaidade masculina e assim conseguir um esposo. Talvez George Eliot tivesse em mente as críticas que o Sturm und Drung fez ao comportamento estereotipado das pessoas em sociedade, conforme o trecho que abre este artigo. Os membros deste movimento, que propunha um individualismo humano, queriam que as mulheres fossem autênticas como eles eram, dessem vazão aos seus sentimentos e não ficassem escondendo-se atrás de atitudes fingidas como desmaiar, obedecer sempre, não tomar a iniciativa para nada, estabelecidas como estratégias para encaixar-se no estereótipo do feminino e assim conseguir a aprovação de um homem candidato a esposo ou a amante que as sustentariam.

    Prezados leitores, o gênio de George Eliot estava em mostrar os cinquenta tons de cinza das sociedades patriarcais do início do século XVIII: as mulheres seguiam as regras do jogo, agindo polidamente, agradando os homens, esperando que eles agissem, mas a depender do caráter delas, elas o faziam simplesmente para satisfazer seus próprios interesses em detrimento dos interesses do suposto sexo forte. Nessa guerra dos sexos, muitas das vítimas foram homens bem-intencionados como Lydgate, que fiéis ao ideal do cavalheiro responsável pelo bem-estar da dama, foram incapazes de lidar com mulheres predadoras como Rosamond, que souberam extrair o bônus de ter um financiador sem se preocuparem com os ônus de desempenhar o papel do sexo frágil, que era o de ajudar o marido a desenvolver seu potencial. A história do casal Lydgate e Rosamond nos coloca a questão: para que haver relacionamentos? Para sermos sinceros uns com os outros e buscarmos a felicidade juntos, como os românticos alemães propunham? Ou para desempenharmos papéis estereotipados e chafurdarmos em comportamentos passivo-agressivos? A escolha está posta, tanto na sociedade patriarcal do século XIX retratada por George Eliot quanto na sociedade pós-patriarcal do século XXI. Cabe a cada um de nós escolhermos.

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