Por ter sido tropeiro e convivido, antes e depois de se tornar salteador, com a classe rica do sertão – classe interessada, de hábito, em alianças com o cangaço, fosse para a preservação do patrimônio, fosse para o extermínio de inimigos, fosse ainda para a divisão do apurado nas empreitadas de rapina, que tudo isso ocorreu em medida mais elevada do que normalmente se imagina – Lampião incorporava ao seu dia a dia novidades desconhecidas do matuto em geral. No fim dos anos 1920, causavam surpresa sua lanterna elétrica portátil, o flashlight, a capa de borracha e a garrafa térmica, mimos de poderosos de seu convívio.
Trecho retirado do livro Apagando o Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço, de Frederico Pernambucano de Mello (1947- ), escritor, historiador e advogado brasileiro
O termo “narcomilícia” já vinha sendo empregado havia algum tempo pelos representantes da lei para designar as quadrilhas que uniam as táticas de comércio e drogas e de domínio de serviços públicos, como transporte, venda de gás, fornecimento de conexão com a internet e TV a cabo clandestinos. Mas o que se vê agora representa um passo inédito: um pacto estratégico com o objetivo de aumentar o poder bélico e o capital desses grupos.
Trecho retirado do artigo “Aliança Maldita” publicado na edição de Veja de 1º de março sobre a união entre narcotráfico e milícias no Rio de Janeiro
Prezados leitores, na semana passada falei da importância da liberdade de expressão para viabilizar a tolerância mútua entre grupos na sociedade que não concordam sobre os princípios fundamentais do bem viver. Sem um consenso compartilhado por todos sobre o que pode ser objeto de discórdia e o que não pode, acabamos barrando ideias consideradas extremistas, estigmatizando-as e não dando a elas um lugar no mercado das ideias de que fala o cientista político americano John Mearsheimer. O resultado é que elas acabam se expressando de maneira delinquente como vimos no 8 de janeiro de 2023.
O fato é que o Brasil ainda não conseguiu colocar em prática um regime liberal que viabilize a discussão, mesmo que ela não chegue a nenhuma conclusão, e assim que evite que as pessoas caiam na tentação de recorrer à violência para fazer valer seus pontos. Meu objetivo nesta semana será explorar as raízes desse uso da força em nossa história, enfocando um espaço geográfico específico, o sertão nordestino, onde viveu e morreu Virgulino Ferreira da Silva, (1898-1938), o famoso Lampião e traçando um paralelo com outro espaço geográfico, o Rio de Janeiro, berço tanto de grupos paramilitares quanto de organizações do crime organizado.
Em sua biografia de Lampião, Frederico Pernambucano de Mello explica as características do sertão nordestino que o tornaram o terreno propício para o surgimento do cangaço. Devido às condições climáticas e geográficas, a terra da caatinga, seca e de solo pouco profundo, não se prestou à prática da agricultura como ocorreu na Zona da Mata, onde florescia a Mata Atlântica. A única atividade econômica desenvolvida no interior do Nordeste desde o início da colonização foi a pecuária, o que não foi suficiente para gerar empregos que provessem à subsistência das pessoas. Em suma, quem não nascia filho de fazendeiro ou agregado de fazendeiro tinha poucas chances de progredir na vida. As condições eram mais inclementes ainda considerando o modo como o território foi conquistado: à custa do extermínio dos índios tapuias na chamada Guerra dos Bárbaros que se deu entre 1687 e 1720. Nesse ponto há mais uma desvantagem entre o sertão e o litoral. Enquanto que nas áreas ocupadas pela cultura da cana de açúcar os índios tupis estavam mais afeitos à negociação e acabaram estabelecendo alianças com os colonizadores, no interior estes eram recebidos com flechas envenenadas.
Em suma, tem-se um cenário de pouco dinamismo econômico, pobreza e convivência cotidiana com a violência, seja contra os índios seja contra os animais de criação que seriam abatidos. Isso levou o sertão do Nordeste a ter características feudais, no sentido de ser autárquico, isto é, de resolver seus problemas de maneira independente, sem recorrer às autoridades públicas, que ficavam no litoral, e recorrendo à força, quer para conquistar território dos nativos, quer para tomar dos outros bens e riquezas cuja produção era escassa. E é isso que Lampião fez ao longo de sua curta existência, até ser morto pelas forças policiais na gruta de Angico, em Sergipe.
Conforme o trecho que abre este artigo, o rei do cangaço tinha ao seu dispor os melhores equipamentos então disponíveis para se dedicar a sua profissão que era a de vender proteção, ser instrumento de vingança contra inimigos de latifundiários e lutar contra as forças da lei e da ordem, as quais bem ou mal eram o antípoda contra esse mundo de justiça privada e de uso da violência indiscriminadamente para resolver conflitos. E como exercia seu ofício de maneira muito boa, afinal era um ótimo líder militar que tinha sob seu comando direto e indireto mais de duzentos homens, Lampião era bem pago e carregava consigo em seus bornais a riqueza acumulada na forma de objetos em ouro: moedas, crucifixo, aliança, lapiseira, tesoura de apurar ponta de charuto, tabaqueira. Que lugar mais seguro do que o próprio corpo do chefe guerreiro para guardar os valores conseguidos à bala e a facadas? Afinal em uma sociedade com baixo nível de diálogo e portanto de confiança, com quem depositar seus bens mais preciosos?
Grupos armados prestando serviços de proteção e extermínio para outros grupos, grande movimentação de valores econômicos, líderes que exercem controle férreo sobre seus comandados. Quase um século depois e a história se repete em outras paragens brasileiras, desta vez no Rio de Janeiro, palco das peripécias das milícias que, conforme o trecho que abre este artigo, vendem serviços públicos sem serem autoridades estatais e serviços de proteção para narcotraficantes. Como explicar o fenômeno no Rio de Janeiro, que afinal está no litoral e foi capital do Brasil de 1763 a 1960?
A explicação consensual para a estagnação econômica da Cidade Maravilhosa é justamente o fato de ela ter deixado de ser capital e portanto de concentrar o funcionalismo público federal, que se mudou para Brasília. Não é meu propósito aqui explorar todos os motivos que fizeram o Rio de Janeiro ter deixado de ser nossa Paris, o lugar em que as modas e tendências eram lançadas e irradiadas pelo resto do país, o lugar que dava o tom da nossa civilização tropical. Basta dizer que nossa violência atávica se recicla, veste novas roupagens, mas continua funcionando sob a tríade da criação de grupos armados dedicados ao uso da força, da falta de oportunidades para as pessoas terem profissão lícita e a existência de líderes que organizam esses grupos e os tornam eficazes. Ontem Lampião, o cangaceiro sertanejo, hoje Zinho, o miliciano carioca, citado na reportagem de Veja.
Prezados leitores, será que um dia teremos o mercado de ideias do liberalismo de John Mearsheimer ao invés de termos um mercado de armas e de assassinatos encomendados? Aguardemos, divididos entre a esperança e o fatalismo.