Voltaire: […] Mas eu tenho minha fé também – que no longo prazo, a verdade será uma benção até mesmo para os pobres.
Bento: a verdade não é verdade a não ser que permaneça verdade através das gerações. As gerações passadas colocam você no pedestal, as futuras gerações irão criticá-lo. Mesmo os vitoriosos na luta pela vida o reprovarão por tirar dos pobres as esperanças que os reconciliavam com sua posição humilde na estratificação inevitável de qualquer sociedade.
Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) em que o escritor francês Voltaire (1694-1778) tem um diálogo fictício no Elísio com o papa Bento XIV (1675-1758)
Se lhe falta dignidade, sem elevação da alma, é porque a nobreza dispensa tudo isso; caso ele se associe com tudo o que é vil em uma das cidades mais imorais, é porque seus antepassados criaram honra suficiente para ele; se ele se junta a velhacos, se ele mesmo é velhaco, se ele não paga os salários de um serviçal dele, ah, então Madame, eu considero quão afortunado é não ser o fruto das próprias realizações! Esses ancestrais – quem eram eles? Pessoas sem reputação, sem fortuna, meus semelhantes; eles tinham algum tipo de talento, conquistaram fama; mas a natureza, que lança a semente do bem e do mal, deu-lhes uma descendência lamentável.
Trecho de carta enviada pelo escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a Madame de Benseval para reclamar do seu patrão, o embaixador da França em Veneza, o Conde Pierre-Auguste de Montaigu
Prezados leitores, na semana passada eu tentei estabelecer semelhanças entre as concepções de justiça de Voltaire e de Sócrates (470 a.C.-399 a.C) chamando a atenção para o fato de que ambos associam a justiça à divindade. Para Sócrates, e para seus conterrâneos, os quais compartilhavam as mesmas crenças religiosas, a deusa Têmis ofereceu aos homens as leis como uma dádiva para que eles pudessem organizar-se em sociedade e assim, exercerem atividades tipicamente humanas. Para Voltaire, um dos atributos da divindade deve ser a de ser justo pois se nós, seres humanos, não tivermos a esperança de que ao final os bons serão recompensados e os maus punidos por Deus fica difícil conseguir lidar com as vicissitudes da vida e seguir em frente, apesar dos pesares.
Nesta semana, adicionarei uma nuance ao pensamento de Voltaire, pois em que pese ele querer crer em uma justiça divina, ele crê muito mais intensamente na possibilidade de progresso na terra, não no céu, no cultivo da verdade, do conhecimento, da tolerância, da liberdade de pensamento, no combate às superstições para que, no aqui e no agora, a vida melhorasse para todos, para que a sociedade não fosse dominada por uma ortodoxia de pensamento que, acumulando poder, impusesse sua visão da realidade a todos e decidisse sobre o que era justo e injusto com base nessa visão unilateral. É no contexto dessa luta contra as verdades estabelecidas, que sufocavam o indivíduo, que Voltaire criticou o poder da Igreja Católica e lutou por pessoas como Jean Calas (1698-1761), um protestante acusado injustamente de ter matado o filho e que foi condenado a uma morte de suplício, executada em 10 de março de 1762.
Sob essa perspectiva, apesar de Voltaire cultivar a concepção de uma entidade divina justa, ele nunca identificava tal Deus com o Deus das religiões organizadas, justamente porque em nome de Deus as Igrejas enquanto instituições acabavam tratando de maneira brutal os indivíduos que ousavam não compartilhar dos seus dogmas. É por isso que o escritor francês discorda do papa Bento XIV no diálogo criado por Will e Ariel Durant e citado na abertura deste artigo a respeito do bem que a verdade faria aos pobres. Mesmo sendo eles pouco inclinados a pensar e incapazes de fazê-lo por lhes faltar instrução, Voltaire tinha a fé que a verdade faria uma diferença na vida dos pobres porque ela traria melhora nas condições materiais da existência e faria a ordem jurídica mais justa, menos tendenciosa em relação ao pensamento das elites dominantes que procuravam perpetuar seus privilégios, inclusive por meio das narrativas religiosas disseminadas na sociedade para justificar o status quo.
Ora, o papa Bento XIV discorda dessa concepção de que o pensamento criativo dos filósofos e as descobertas da ciência fariam bem aos pobres. Para ele, a única verdade a ser transmitida aos pobres era a verdade da Igreja que dava consolo para pessoas que estavam destinadas a sofrer na vida, a não ter um quinhão adequado das benesses da sociedade. Para não as deixar cair no desespero ante a opressão dos poderosos, era preciso ensinar aos mais pobres que a justiça humana era inerentemente falha e que só a justiça divina era perfeita e estaria ao alcance dos bons depois da morte. Em suma, após o inferno terrestre da pobreza e da injustiça seguiria o paraíso celeste onde tudo seria retificado.
É claro que Voltaire, como bom Iluminista, crente no poder da razão para engendrar prosperidade material e uma melhor aplicação da justiça humana, não poderia aceitar tal receita. Sua luta feroz pela revisão do processo de Jean Calas, que culminou com a anulação da condenação do mercador protestante em 9 de março de 1765, mostra que ele queria tornar a justiça humana cada vez melhor, na medida do possível. Não menos sensível às iniquidades neste mundo, fruto da ignorância e do exercício arbitrário do poder, era Jean-Jacques Rousseau.
Em 1743 Jean-Jacques Rousseau torna-se secretário do embaixador da França em Veneza, o Conde de Montaigu que, segundo Rousseau, era quase analfabeto. Em 1744, o Conde o demite do posto após uma disputa entre os dois pelo fato de o embaixador não ter pago o salário do seu secretário, já que ele mesmo não recebera sua remuneração. Rousseau escreve uma carta à mulher que o havia indicado para o cargo, já que não consegue falar com ela pessoalmente. O trecho que abre este artigo mostra a indignação do escritor e filósofo, que não tinha nenhuma fonte de renda segura, com o comportamento de um membro da aristocracia. O que o conde de Montaigu havia feito para merecer os privilégios de que gozava? Que qualidades intelectuais ou morais ele tinha para ocupar o posto de embaixador?
Para Rousseau, a resposta deveria ser negativa para ambas as perguntas. A diferença entre o Conde e Rousseau é que aquele havia tido a sorte de ter tido ancestrais que tiveram algum talento e conquistaram bens e direitos que puderem transmitir por décadas e até séculos aos seus descendentes. Nesse sentido, o sr. Pierre-Auguste não merecia usufruir dessa herança porque não tinha méritos próprios, mas usufruía porque a sociedade, cujas leis eram estabelecidas pela nobreza para seu próprio benefício, assim o permitia. Uma flagrante injustiça, sem dúvida porque um homem mau e incapaz era recompensado.
Prezados leitores, essa indignação mostrada por Rousseau diante dos privilégios gozados por uma aristocracia que há séculos havia tomado o poder foi um dos germes da Revolução Francesa, a qual teve entre seus ideais estabelecer uma utopia na terra, isto é, uma sociedade justa, fundada na lei, na razão, no conhecimento, em contraponto à tirania, à injustiça e à ignorância. Se a utopia se concretizou na prática é uma outra questão. O fato é que, conforme Will e Ariel Durant observam em “A Idade de Voltaire” uma civilização morre se não cultivar a ideia seja de um paraíso terrestre seja de um paraíso celeste: sem nenhuma narrativa sobre um mundo melhor o esforço coletivo perde significado e seus atores perdem motivação. Tanto Voltaire quanto Rousseau e o próprio papa Bento XIV criaram uma narrativa nova ou aprimoraram uma narrativa já existente, cada um a seu modo. Quem o faz agora no Ocidente em pleno século XXI?