Quanto mais substância e força damos aos pensamentos pela meditação, mais fácil será concretizá-los na expressão. […] A mente humana não consegue criar nada, produzir nada, a não ser que tenha se enriquecido pela experiência e pela meditação; […] Somente aqueles trabalhos que são bem escritos entrarão para a posteridade. A quantidade de conhecimento, a singularidade dos fatos, mesmo a novidade das descobertas, não serão garantia de imortalidade; […] porque o conhecimento, os fatos, as descobertas são facilmente removidos e levados para longe, e até ganham ao serem colocados em mãos mais hábeis. Essas coisas estão fora do homem, mas o estilo é o homem ele mesmo; o estilo não pode ser roubado, transportado ou alterado; caso seja elevado, nobre e sublime, o autor pode ser admirado igualmente em qualquer época, pois somente a verdade é durável e permanente.
Trechos do discurso proferido em 25 de agosto de 1753 pelo naturalista francês Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), ao ser admitido à Académie Française
Uma barreira é tanto um obstáculo que desengana quanto um convite para que se procure superá-lo. A barreira tanto desencoraja quanto tenta. Se existe, é porque esconde algo. Se esconde algo, é porque é precioso. Os primeiros portugueses pioneiros decidiram-se pela segunda alternativa, ato que seria o primeiro a determinar a criação da cidade de São Paulo.
Trecho do livro “A Capital da Solidão – Uma história de São Paulo das origens a 1900”, de Roberto Pompeu de Toledo, referindo-se à Serra do Mar, muralha de 800 metros de altura que corre paralela ao mar e liga o litoral ao Planalto, onde foi fundada a cidade de São Paulo
Prezados leitores, tenho por hábito caminhar pelo centro histórico de São Paulo, para apreciar a arquitetura dos prédios antigos, as esculturas lapidadas na fachada, e por vezes entrar em um ou outro edifício à cata de alguma obra de arte em exposição temporária ou permanente. Achar essas pérolas requer motivação, porque a região em volta da Praça da Sé é frequentada nos finais de semana e feriados, que é quando tenho tempo de sair pela cidade afora, em sua maior parte por moradores de rua. Andar por lá não chega a ser perigoso pois há policiamento, mas a quantidade de sem-teto é tamanha que afasta os cidadãos normais. O centro de São Paulo poderia ser uma atração turística muito maior do que é, mas creio que nunca chegará a sê-lo de maneira robusta o suficiente para que a massa de turistas afaste os mendigos, bêbados e drogados.
É inegável que não temos aqui o nível de antiguidade de cidades como Salvador e Recife, que ostentam igrejas e conventos do século XVII, e que a casa mais antiga que temos no centro de São Paulo que ainda resta em pé talvez seja a da Marquesa de Santos, que foi proprietária do agora chamado Solar da Marquesa de 1834 a 1867. Isso se deve não só ao fato de que o casario colonial foi derrubado à medida que a cidade se expandia no começo do século XX, mas a que a cidade de São Paulo ao longo de seus primeiros trezentos anos de vida foi um simples vilarejo do interior, fora do alcance dos navios da metrópole, sem nada a oferecer à cobiça portuguesa que fizesse com que os colonizadores aqui se instalassem, como o fizeram nas cidades litorâneas, que os colocavam mais próximos da Europa, para onde eram enviados os produtos produzidos ou recolhidos nos trópicos.
A constatação de que a cidade de São Paulo não tem muito a oferecer em termos de patrimônio histórico é fácil quando caminhamos pelo centro e fica mais inteligível ao lermos a história de “Sampa”, como é conhecida, contada no livro de Roberto Pompeu de Toledo citado na abertura deste artigo. Para resumir uma longa história, Martim Afonso de Sousa, que em 1532 aportara em São Vicente, no litoral, tinha vindo ao sul do Brasil com uma esperança: a de tornar o Planalto, a que se tinha acesso depois de subir a íngreme e dificultosa Serra do Mar – a barreira de que fala Roberto Pompeu de Toledo – uma plataforma para a realização de expedições que pudessem levar os portugueses a chegar pelo interior à terra do ouro e da prata, isto é, ao que hoje chamamos de Peru.
No entanto, Francisco Pizarro perseguiu uma melhor estratégia para descobrir o império do rei branco, apostando em um caminho marítimo pelo Pacífico. Em 1531, ele aportou na costa oeste da América do Sul e o ouro e a prata ficaram para os espanhóis. Martim Afonso de Sousa, que por causa de suas atividades no litoral paulista, recebeu São Vicente como capitania hereditária, jamais voltou a pôr os pés no Brasil, preferindo aventurar-se na Índia. O vilarejo além da Serra, distante do litoral, desprovido de metais preciosos e inútil como ponto de partida para a busca do ouro e da prata que já tinham sido abocanhados pelos rivais espanhóis, que seria fundado em 1554 com a criação do colégio dos jesuítas, foi esquecido e abandonado pelo governo português.
Daí por que Roberto Pompeu de Toledo chama a desenxabida vila de Capital da Solidão, solidão de um local cujo acesso requeria vencer um paredão de 800 metros coberto de mata densa. E no entanto, apesar da vila ter permanecido imersa em sono profundo até o século XIX, isso não é motivo suficiente para que o jornalista não conte uma história saborosa da cidade, assim como não é motivo para que eu humildemente deixe de caminhar por um centro cuja história é bem desprovida de marcos arquitetônicos e culturais, justamente por nada de muito interessante ter acontecido aqui desde que Martim Afonso de Sousa partiu para nunca mais voltar. O motivo quem explica é o naturalista francês Buffon, autor da famosa frase que se perpetuou na história: “O estilo é o homem”. Explico-me.
Conforme o trecho que abre este artigo, o autor de “História natural, geral e particular” que no total era constituída de 44 volumes, considerava que o estilo era tudo. O que era o estilo? Era a capacidade do homem, pela meditação sobre a experiência, chegar à expressão dos seus pensamentos. E tal expressão perduraria pelos séculos se ela fosse perfeita, se ela fosse capaz de evocar tudo aquilo que tinha dado ensejo a ela, em suma se ela chegasse a uma verdade, que fosse além dos fatos, descobertas e conhecimento que tinham sido processados pela mente que burilou tal verdade. Pois o que importava não eram os detalhes específicos, mas o panorama geral dado pela maestria estilística do homem que criava a forma na qual cabiam os elementos já conhecidos pelo dono do estilo, mais aqueles que ainda se dariam por conhecer. Em seu trabalho de naturalista Buffon muitas vezes foi criticado por sacrificar a precisão dos detalhes em prol das generalizações, mas nunca se negou a ele a qualidade de saber expressar suas ideias acerca da majestade da natureza.
Prezados leitores, seguindo consciente ou inconscientemente as lições do naturalista francês, Roberto Pompeu de Toledo faz seu estilo dar uma dinâmica à história de São Paulo, cidade que teve um destino medíocre do século XVI ao século XIX, e que apesar disso não deixou de ser marcada por vários dramas. Ao utilizar a Serra do Mar como uma metáfora da dificuldade de colonizar esta parte do sul do Brasil, e da motivação para superar tal desafio, o jornalista tornado historiador, desfia os elementos épicos da criação de São Paulo: a barreira física representada pelo Serra do Mar, a decepção dos portugueses que contavam chegar ao Peru passando pelo Planalto e atravessando o interior do Brasil, o conflito entre os jesuítas motivados e comprometidos com a evangelização e os portugueses como João Ramalho que viveram aqui na poligamia escancarada com suas temericós, i.e. as índias oferecidas aos estranhos como símbolo de aliança.
Desse modo, a Capital da Solidão, triste e enfadonha na realidade, transforma-se na vila do Planalto, erguida no pico da Serra do Mar. E os meus passeios pelo centro adquirem um sabor especial ao me dar conta de que aquele centro desprovido de patrimônio é o fruto da expansão vertiginosa de uma cidade que não era nada para o país e que acabou tornando-se tudo. Em tempo: todos estão convidados para um passeio pelos arredores da Praça da Sé, para verificarem in loco a mutação da tal da Capital da Solidão em capital das multidões.