Quais são os valores do Iluminismo, os ideais do Iluminismo? Em resumo, é o ideal de que devemos utilizar a razão para aumentar o florescimento humano. O que quero dizer com “razão”? Discussão aberta, ciência, história, avaliação das ideias. E os frutos da razão foram implementados em determinadas instituições, particularmente na democracia liberal, nos mercados regulados e nas instituições internacionais. Esse é em resumo, o Iluminismo. O que quero dizer com florescimento? Bem, quero dizer coisas que queremos para nós mesmos e não podemos negar aso outros: vida, saúde, subsistência, prosperidade, paz, liberdade, segurança, conhecimento.
Trecho de autoria do professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-), em seu debate com o professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-)
Como você consegue obter progresso moral e político se você não chega à verdade, se você tem uma situação em que os indivíduos não conseguem chegar a um acordo sobre os princípios fundamentais?
Trecho de autoria do professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-) em seu debate com o professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-)
Todo o conhecimento será subdividido e ampliado; e sendo o conhecimento, como observa Lord Bacon, poder, os poderes humanos de fato aumentarão; a natureza, incluindo tanto seus materiais quanto suas leis, ficarão mais sob nosso domínio; os homens farão sua situação neste mundo tremendamente mais fácil e confortável; eles provavelmente prolongarão sua existência nela, e ficarão a cada dia mais felizes, cada um por si mesmo, e mais capazes de comunicar a felicidade aos outros (e, creio eu, mais dispostos a fazê-lo). Assim, qualquer que tenha sido o começo deste mundo, o final será glorioso e paradisíaco além do que nossa imaginação pode conceber agora… Felizes são aqueles que contribuem para a difusão da pura luz deste evangelho eterno.
Trecho retirado do livro “História das Corrupções da Cristandade” (1782), de autoria de Joseph Priestley (1733-1804), teólogo e cientista britânico, descobridor do oxigênio, citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)
Prezados leitores, antes de mais nada é preciso fazer um esclarecimento. Segundo Thomas Kuhn, há três indivíduos que podem ser considerados os descobridores do gás oxigênio, o apotecário sueco Karl Wilhelm Scheele (1742-1786), Joseph Priestley e o químico francês Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794). Todos os três obtiveram, por meio de experimentos, uma amostra relativamente pura do gás, mas Lavoisier levou os louros porque ele deu ao gás um nome, derivado do grego, que quer dizer um gerador de ácidos, porque Lavoisier considerava erroneamente que o oxigênio era um elemento constituinte indispensável de todos os ácidos. Dando esse nome Lavoisier acabou por enterrar de vez a teoria do flogístico, que segundo acreditavam os químicos da primeira metade do século XVIII, era um fluido liberado no ar a partir da queima de uma substância.
O fato é que ao passo que Priestley ainda acreditava na teoria do flogístico e considerou que o gás que ele obteve era ar sem o flogístico, Lavoisier percebeu por meio de seus experimentos que na verdade na combustão o material que queimava retirava algo do ar, o oxigênio, não liberando nada. Essa capacidade de dar um passo além em termos conceituais foi fundamental para que Lavoisier fosse um dos pais da química moderna, ao conseguir explicar melhor o fenômeno da combustão. Quanto a Scheele, o problema dele foi que não publicou seus resultados a ponto de ter alguma influência sobre o trabalho de seus colegas do mundo da ciência.
Feitos esses esclarecimentos sobre a epítome dada a Priestley de descobridor do oxigênio, independentemente da maior ou menor contribuição dele à química moderna, o fato é que o cientista britânico era um entusiasta da ciência, para ele a única força capaz de criar uma utopia na Terra, se ela vencesse a superstição e a ignorância. Conforme o trecho que abre este artigo, a ciência traria conhecimento ao homem e lhe conferiria poder sobre o mundo, de modo a livrá-lo dos males da doença e da morte e levá-lo a uma vida mais feliz, que seria livre dos medos atávicos e esperançosa no futuro, o qual tinha muito mais chances de concretizar-se. E o homem que vivesse mais e melhor, sendo mais feliz, comunicaria essa felicidade aos próximos: um círculo virtuoso se construiria sob o condão da vitória da ciência.
Não é menos inabalável o otimismo de um dos principais divulgadores da filosofia Iluminista no século XXI, o psicólogo canadense Steven Pinker. Conforme ele explica na discussão citada na abertura deste artigo, o Iluminismo é o cultivo da razão (cotejo de ideias para a maior aproximação possível da verdade) para que o homem conquiste bens materiais e imateriais, como prosperidade, saúde, segurança, liberdade e paz. Essa razão em prol do florescimento humano concretiza-se em um determinado ambiente político, econômico e institucional. Ele é constituído de democracia para haver o embate de ideias e a obtenção de consensos possíveis, de mercados em que o indivíduo tenha a liberdade de empreender e de oferecer sua força de trabalho, e de instituições que possibilitam que a democracia e os mercados funcionem sem impedimentos.
E no entanto, o intelectual com o qual Steven Pinker debateu a respeito do Iluminismo, John Mearsheimer, tem lá suas dúvidas sobre essa receita de sucesso, formada por razão + conhecimento + ciência = bem-estar material e espiritual. Pois o fato é que a razão livre de restrições determinadas pelos dogmas religiosos e pelas superstições não fundadas na realidade não é unívoca. Diferentes pessoas, igualmente educadas, podem ter visões diametralmente opostas, a depender de seus valores fundamentais. Para o cientista político, se não há acordo sobre o que é a boa vida sob o ponto de vista ético, não haverá o compartilhamento de uma verdade ancorada em uma visão do modo como devemos viver neste mundo e portanto, não haverá progresso político nem moral: as pessoas, os Estados, as civilizações continuarão a disputar entre si porque eles não conseguem se entender sobre o que é certo e o que é errado. A concepção Iluminista de uma razão transparente, acessível a quem quer que estivesse disposto a livrar-se dos dogmas religiosos, cai por terra quando consideramos a diferença de concepções embutidas nas diferentes ideologias espalhadas pelo mundo, seja o liberalismo ocidental, o islamismo do Oriente Médio, o confucionismo chinês, o cesaripapismo russo, o teocraticismo vigente em Israel e no Irã.
Prezados leitores, os ideais do Iluminismo, colocados em prática primeiro no Ocidente e depois espalhados pelo mundo, levaram a prosperidade a centenas de milhões de indivíduos na China e na Índia, países que agora colhem os frutos da sua importação da receita de sucesso. Afinal, de acordo com o FMI, a China é a segunda economia mundial e a Índia a quinta. Por outro lado, será que fizemos progressos morais e políticos utilizando a razão? Ou a razão livre para florescer acaba criando as mais variadas e conflitantes ideologias?
Conforme já comentado neste humilde espaço, Israel, que já matou ao menos 50.000 palestinos desde 7 de outubro, a maioria deles (70%) mulheres e crianças, considera-se paladino da civilização contra a barbárie. O que há de civilizado nessa matança? Não estará aqui o governo israelense simplesmente racionalizando seu desejo de vingança e de extermínio do povo palestino usando o véu da luta contra o terrorismo? Será que algum dia haverá um consenso sobre o que fazer no Oriente Médio com base na razão? Ou a razão livre e desimpedida só levará à construção de dogmas políticos e religiosos pelas respectivas partes? Nesse sentido, será que vivemos no melhor dos mundos possíveis em termos dos confortos materiais disseminados cada vez mais no mundo e ao mesmo tempo no pior dos mundos possíveis, pois cada um tem a liberdade de ter sua própria opinião sobre tudo e sente-se no direito de defendê-la contra aqueles que com ela não concordam? Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso tenhamos uma visão mais crítica das utopias na Terra prometidas por Priestley no século 18 e por Pinker no século XXI.