Cada classe e cada país sempre garante para si a maior parcela possível da riqueza, e no final das contas são as forças armadas que decidem qual o tamanho dessa parcela. […] Assim, eu presumo que a autoridade central será criada pela força, ou pela ameaça da força, não por uma organização voluntária como a Liga das Nações, que nunca será forte o suficiente para coagir as Grandes Potências recalcitrantes.
Trecho retirado do ensaio “Algumas Perspectivas” escrito pelo filósofo Bertrand Russell (1872-1970) e incluído na coletânea dos seus “Ensaios Céticos”, publicados em 1928
Maquiavel não entendeu a verdadeira natureza do soberano… Longe de ser o senhor absoluto daqueles que lhe são subordinados, ele é somente o primeiro dos seus servidores, devendo ser o instrumento do seu bem-estar, assim como eles são o instrumento da sua glória.
Trecho retirado do livro “Refutação do Príncipe de Maquiavel”, escrito em 1739 pelo príncipe herdeiro da Prússia, Frederico (1712-1786), sob a influência do filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)
Parece claro e evidente para mim que um indivíduo deve manter sua palavra de maneira escrupulosa…Se ele for enganado ele pode pedir a proteção das leis… Mas a que tribunal o soberano pode recorrer se outro príncipe viola os compromissos feitos a ele? A palavra de um indivíduo implica o infortúnio de um único homem; aquela de um soberano pode causar uma calamidade geral em toda uma nação. Tudo isso pode ser reduzido a uma pergunta: é melhor que as pessoas pereçam do que o príncipe violar um tratado? Que imbecil hesitaria em decidir essa questão?
Trecho retirado do livro póstumo “História do meu Tempo” escrito pelo rei Frederico II (1740-1786) da Prússia, chamado de Frederico o Grande
Prezados leitores, na semana passada citei Alistair Cooke, ex-embaixador britânico, e o citarei novamente nesta semana. De acordo com ele, no artigo “O Chapéu do Mágico e o Grande Simulacro do Bálsamo Paliativo” a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ofereceu 10 bilhões de dólares ao Egito e 5 bilhões de dólares à Jordânia para que aceitem receber os palestinos residentes na Faixa de Gaza, que está sendo bombardeada pelos israelenses desde o ataque do Hamas em 7 de outubro. O objetivo então parece ser facilitar a concretização da solução final de Israel que é se livrar dos palestinos e criar o Grande Israel da Bíblia, conforme expliquei aqui na semana passada.
De acordo com Ron Unz em seu site, até agora pelo menos 14.000 habitantes de Gaza já morreram, dois terços deles mulheres e crianças, fora os que estão sob os escombros das construções destruídas. Será que os 2 milhões e 300 mil palestinos que lá viviam até outubro irão ser desalojados definitivamente e abrigados em tendas no deserto do Sinai? Será que perderão definitivamente qualquer ligação com a Terra da Palestina? Os governantes do Egito e da Jordânia teriam recusado a oferta, mas de repente se Dona Úrsula aumentar as cifras eles acabem aceitando e será a pá de cal no Estado Palestino. Os despossados palestinos, sem terem a proteção de nenhum Estado forte, sofrerão a derradeira e a maior das injustiças ao longo dos 75 anos de conflitos pelo território.
Se formos olhar para a história esse é um destino comum a outros povos obliterados pela incapacidade de resistir à força das armas. Não devemos nos espantar, mas apenas lamentar como Yasser Arafat, o líder da Organização para a Libertação da Palestina o fez, lembrando dos índios americanos e do desejo dele de que o seu povo não tivesse o mesmo fim trágico. Poderíamos argumentar que se tivéssemos partes em conflito menos sectárias e dogmáticas, como é o caso do governo de direita capitaneado por Benjamin Netanyahu em Israel e o Hamas teríamos uma chance de paz.
No entanto, a análise da trajetória de um príncipe enciclopédico como Frederico o Grande, que conversava sobre as artes, a guerra, a medicina, a literatura, a religião, a filosofia, a moral, a história e as leis, tocava flauta e escrevia poemas em francês nas horas vagas e manteve uma correspondência profícua com um intelectual do porte de Voltaire mostra que a realidade da capacidade ou da aptidão para a guerra e a paz é complexa.
Conforme o trecho que abre este artigo, antes de suceder ao pai Frederico Guilherme I (1688-1740), Frederico, o Grande cultivava ideais iluministas de governar com justiça, clemência e bondade para o bem-estar do povo. A conquista e manutenção do poder à moda maquiavélica, isto é, a qualquer custo, mesmo ao custo da destruição e da miséria do povo, lhe eram repugnantes. E ao ascender ao poder, em 1740, Frederico praticou essas virtudes que ele exaltou em seu livro contra Maquiavel. Diante da safra ruim que se esperava no verão ele ordenou a venda de grãos a preços razoáveis aos pobres, aboliu o uso da tortura em processos criminais, ordenou que todas as religiões fossem toleradas e que nenhuma tivesse a liberdade de se impor à outra. Além disso, sob a influência de Voltaire, seu amigo, Frederico o Grande deu novo ímpeto à Academia de Ciências de Berlim.
Tudo muito de acordo com o modelo de um rei-filósofo, livre das superstições e evitando perseguir pessoas por suas crenças. Mas no mesmo ano em que Frederico assumiu o poder na Prússia o Imperador do Sacro Império Romano Germânico, rei da Hungria, Croácia e Boêmia, Arquiduque da Áustria, Carlos VI (1685-1740) morria sem ter herdeiros masculinos, só uma filha Maria Theresa (1717-1780), cuja herança foi contestada. Não me cabe aqui descrever todos os detalhes da Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), basta dizer que Frederico, depois de aliar-se ora a um país ora a outro, conforme as conveniências do momento, renegar tratados firmados e invadir a Silésia, que era parte dos domínios do imperador morto, acabou conseguindo ficar com a região para si. Foi assim que o rei-filósofo se transformou no rei-soldado. Mas como sua mente não havia desaprendido as lições absorvidas antes, Frederico justificou sua adesão a Maquiavel.
Conforme mostra o trecho que abre este artigo, o rei da Prússia passou a considerar que a moral que rege a vida de um indivíduo não pode reger a vida de um Estado soberano. Afinal o indivíduo, se tiver seus direitos violados, pode recorrer à justiça do país, de forma que há um incentivo para que as pessoas ajam corretamente, do contrário serão punidas. Mas qual o incentivo para um Estado cumprir as obrigações firmadas em um tratado assinado com um aliado? Afinal, se o aliado não cumprir sua parte do acordo, a quem recorrer para fazê-lo cumprir? Há por acaso uma instância supranacional que possa ser acionada para fazer os recalcitrantes seguirem a lei? Não havendo quem imponha a obediência, não é melhor cada Estado proteger-se cumprindo obrigações com outros Estados soberanos só quando isso lhe for vantajoso ou pelo menos não lhes prejudicar? O que se ganha na cena internacional em seguir princípios éticos se isso pode diminuir o poder e a riqueza de um país? A ética vale mais do que o bem-estar do povo do qual o soberano tem a responsabilidade de cuidar?
Um outro filósofo, este do século XX, fez a mesma constatação da onipresença da força nas relações internacionais, mas ao contrário do rei da Prússia, propunha um caminho para a paz. Em seu ensaio “Perspectivas”, escrito sob a influência da disputa entre capitalismo e socialismo em voga na década de 1920, Bertrand Russell defende que, como contraponto à força da guerra representada pelas disputas militares entre os países por recursos, uma força da paz deveria ser imposta a todos os Estados. Seu objetivo seria o de impedir a proliferação de conflitos pelo mundo e ela teria eficácia justamente por ser um exercício de poder em prol da coletividade e não de um determinado país.
As palavras de Russell sobre a Liga das Nações, que depois de 1945 foi rebatizada de Organização das Nações Unidas, revelam-se prescientes sobre a situação de hoje. A ONU, por ser uma organização voluntária, não tem a força necessária para impor a ordem e nunca terá, de acordo com o filósofo inglês. Nosso destino, independentemente do nível de cultura dos governantes, parece ser o da guerra. E a paz, onde ficará? No século XXI ela ficará sob os escombros de Gaza?