Na religião e na política, ao contrário, em que pese ainda não haver nada que se aproxime do conhecimento científico, todo mundo considera de bom tom ter uma opinião dogmática, a ser respaldada causando fome, prisão e guerra e a ser protegida da concorrência argumentativa de quaisquer opiniões diferentes. Se fosse possível levar os homens a ter uma mentalidade minimamente agnóstica em relação a esses assuntos, nove décimos dos males do mundo moderno seriam curados.
Trecho retirado do ensaio “Livre-Pensamento” incluído no livro “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970)
O problema é que Benjamim Netanyahu faz tudo para que uma solução política não seja discutida. E é nesse ponto que a comunidade internacional, a Europa, os Estados Unidos, devem dizer a Benjamim Netanyahu que essa guerra não é aceitável. Do Hamas vai-se passar ao Irã, vai-se passar a outros alvos e entrar-se-á então em uma lógica de guerra de civilizações. Quando Benjamim Netanyahu diz que há “de um lado o povo da luz e do outro o povo das trevas”, vê-se bem em qual engrenagem estamos metidos.
Trecho da entrevista dada em 7 de novembro a uma TV francesa pelo ex- Ministro das Relações Exteriores e ex-Primeiro-Ministro Dominique de Villepin sobre a guerra empreendida por Israel contra o Hamas
Guerreiros cristãos que em vão buscais uma e outra vez pretextos para a guerra, […] vós frequentemente tendes sido o terror do vosso próximo, ide lutar contra os bárbaros, ide e lutai pela redenção dos Lugares Santos. Vós, que por um soldo vil vendeis o vigor dos seus braços à ira de outros, armai-vos com a espada dos Macabeus e ide e fazei por merecer a recompensa eterna. Se triunfardes sobre vossos inimigos, os reinos do Leste serão vossa recompensa. Se os vencerdes tereis a honra de morrer no mesmo lugar de Cristo e Deus jamais Se esquecerá que vos achou nos santos batalhões.
Trecho da conclamação do papa Urbano II (1042-1099) à Primeira Cruzada para a conquista de Jerusalém, em 27 de novembro de 1095 no Concílio de Clermont
Prezados leitores, as coincidências abundam, os ecos do passado retumbam. No dia 7 de outubro de 2023 o grupo palestino Hamas lançou uma operação chamada de “al-Aqsa Flood” contra Israel. Al-Aqsa é o nome de uma mesquita em Jerusalém, e a razão da referência a este nome é que algumas semanas antes daquela famigerada data o local da mesquita havia sido palco de conflitos entre árabes e judeus. Não é de se surpreender que lá haja disputas entre pessoas de diferentes denominações religiosas. Segundo a tradição muçulmana, foi de al-Aqsa que o profeta Maomé ascendeu ao céu. Por outro lado, nessa mesma esplanada onde foi erigida a mesquita, haviam estado antes o Primeiro Templo de Salomão, construído entre os séculos X e VI a.C., e o Segundo Templo de Salomão edificado no século VI a.C., reconstruído nos tempos de Herodes, o Grande (73 a.C. – 4 a.C.) e saqueado e destruído pelos romanos em 70 d.C., o que levou à diáspora judaica. Para arrematar, al-Aqsa foi a sede da Ordem dos Cavaleiros Templários em Jerusalém, os soldados de Cristo. É a respeito dos defensores da fé que desejo falar inicialmente nesta semana.
Segundo o verbete “Templarios” do dicionário Nuevo Espasa Ilustrado, os Templários foram uma ordem religiosa e militar fundada por Hugues de Payens (1074-1136) e mais sete companheiros em Jerusalém em 1118 para proteger os peregrinos que se dirigiam aos lugares santos, logo se convertendo na vanguarda do exército cristão na Terra Santa. E que exército cristão era esse? Nada mais nada menos do que aquela formado ante a convocação feita pelo papa Urbano II para que os cristãos parassem de guerrear entre si e fossem combater os infiéis, isto é, os não cristãos no Oriente Médio, conforme mostra o trecho que abre este artigo.
Um soldado que matasse ou morresse em combate para que os locais onde havia vivido e morrido Jesus Cristo fossem conquistados dos muçulmanos que então os controlavam estaria bendito por Deus, porque suas ações tinham sido todas em nome Dele e para Ele. Uma excelente racionalização para homens praticarem as violências típicas de combates com uma boa consciência, boa o suficiente para subverter totalmente o princípio cristão da humildade em nome de Cristo. E assim, sob os auspícios da finória argumentação do papa iniciou-se a primeira das guerras das civilizações, a que se deu o nome de Cruzadas.
A primeira e certamente não a última e há quem diga que um novo choque de civilizações está para ser detonado. Uma dessas pessoas é o ex-Ministro das Relações Exteriores e ex-Primeiro-Ministro da França Dominique de Villepin. Na entrevista que é citada na abertura deste artigo, Villepin argumenta que Israel está lutando uma guerra do passado. Não adianta tentar resolver o problema dos palestinos pela força e pela violência, pois isso não leva a lugar nenhum há 75 anos. Quanto mais força Israel usa, mais inseguro o país se torna, então é preciso mudar a abordagem. Tampouco adianta o governo israelense assinar acordos de cooperação econômica ou tecnológica com os países árabes, porque o povo árabe na rua quer antes de mais nada justiça para os palestinos. Para Villepin, é necessário que os países ocidentais façam pressão para Israel parar com esses bombardeios da Faixa de Gaza e começar a negociar seriamente a criação do Estado Palestino. Do contrário, a guerra que hoje se concentra na Faixa de Gaza espalhar-se-á pelo Oriente Médio e colocará de um lado os muçulmanos e de outro os judeus e seus aliados ocidentais.
Utópico da parte de Villepin propor uma saída política e não militar? Provavelmente, especialmente se considerarmos as palavras de Bertrand Russell que já foi citado neste humilde espaço defendendo o direito dos palestinos de terem seu próprio lar. Afinal, conforme explica o filósofo britânico no trecho que abre este artigo, política e religião são as áreas cujo nível de conhecimento fica o mais longe do nível de conhecimento atingido nas ciências. Ao contrário das ciências, que conseguiram ao longo dos séculos estabelecer procedimentos consensuais para a descoberta da verdade e a mudar tais procedimentos quando assim mostrou-se necessário para o avanço do conhecimento, nem a política nem a religião chegaram nesse patamar de confiabilidade. Cada indivíduo arvora-se o direito de ter uma posição inarredável e de ignorar os argumentos contrários, tudo para a defesa dos seus próprios valores sagrados. Para Russell, a esperança consiste em tentar inculcar nas pessoas um pouco de incerteza em relação a suas próprias opiniões políticas e religiosas, de modo a relativizá-las e colocá-las no seu devido lugar. Só assim o comportamento das pessoas, incluindo a prática bélica, será menos determinado por elas.
Villepin quer que as partes que hoje se digladiam parem para conversar e achar um modo de conviverem em prol da paz, da prosperidade e da segurança mútuas, Russell propunha que as pessoas fossem levadas por meio da educação para o livre-pensamento a perceber como faltam argumentos lógicos e consistentes para toda e qualquer posição religiosa e política. Em ambos os casos procura-se superar a tendência humana à credulidade e à irracionalidade, as quais sempre vêm à tona em qualquer guerra de civilizações, em que há o choque de dogmatismos.
Prezados leitores, aguardemos o desenrolar dos acontecimentos que prometem se transformar em uma guerra no mínimo regional. Enquanto isso, lembremo-nos que Al-Aqsa tem significados diferentes para cristãos, judeus e muçulmanos. Talvez se todos eles concordassem que al-Aqsa é simplesmente um local de importância histórica conseguíssemos começar a concretizar o sonho de racionalidade e paz de Dominique de Villepin e de Bertrand Russell.