O erro moral se deve exclusivamente a um equívoco de apreciação racional na relação quantitativa de prazeres e dores desenvolvida em cada escolha numa perspectiva diacrônica: ao optar por um determinado curso de ação, sendo-lhe possível fazer a escolha contrária, o agente estima equivocadamente a quantidade e/ou intensidade de prazer que ele pode obter imediatamente – pois ele é enganado pelo “poder da aparência”, causado pela expectativa de obtenção imediata desse prazer – em comparação à quantidade e/ou intensidade de prazer e dor que decorrem futuramente; no final das contas, ele acaba por contrair mais dores do que prazeres, ao contrário de sua estimativa no momento mesmo da escolha. Não se trata, portanto, de uma deficiência do poder do conhecimento na determinação do curso das ações humanas, como aventado inicialmente pela maioria dos homens, mas de ignorância do agente, que é enganado por uma falsa estimativa de prazeres e dores quando considerados no longo prazo, diante da expectativa de se obter uma quantidade de prazer imediatamente.
Trecho do ensaio “O argumento hedonista: a refutação final” escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução à sua tradução do diálogo Protágoras, de Platão (427 a.C.- 347 a.C.)
É uma visão desoladora – um homem com uma mente brilhante, de ideias liberais, lutando para reparar os danos causados pela intolerância do Grande Rei, deixando que seus nobres propósitos se afogassem em bebedeiras sem sentido, e perdendo o amor em um redemoinho de devassidão.
Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Philippe d’Orléans (1674-1723) que foi regente da França de 1715 a 1723
Prezados leitores, na semana passada eu tratei do desastre causado pelos anos de guerra que Luís XIV (1643-1715) impôs ao seu país. Na sua morte, considerando que o herdeiro direto do trono tinha 5 anos, o governo foi exercido interinamente por Philippe d’Orléans, sobrinho do rei-Sol. A herança era maldita: uma dívida de 2 bilhões e 400 milhões de livres, uma dívida flutuante de 590 milhões de livres, na forma de notas promissórias emitidas pelo Tesouro Real. Em 1715 as receitas líquidas do governo eram de 69 milhões de livres, as despesas eram de 147 milhões de livres, sendo que a maior parte das receitas de 1716 já tinham sido gastas. O que fazer? Nesta semana, meu objetivo é tratar de alguns dos aspectos da regência do duque de Orléans para descrever o que ele fez e o que ele poderia ter feito, se tivesse seguido as lições do personagem Sócrates expostas no diálogo Protágoras.
Para debelar a crise financeira e econômica, o Regente nomeou como Ministro das Finanças o escocês John Law (1671-1729), que propôs lançar um sistema de incentivo à atividade econômica pelo estímulo ao crédito: o Estado emitiria papel moeda lastreado nas reservas de metais preciosos e terras do país e baixaria a taxa de juros e os impostos de modo que com mais capital disponível aos agentes privados, os empreendedores criassem negócios e gerassem empregos, fazendo girar a roda da economia. E assim foi feito. Em 1718 foi criado o Banque Royale, que ofereceu aos franceses que detinham títulos da dívida do governo trocá-los pelo valor de face por ações em uma Companhia das Índias cujo objetivo era a exploração da bacia da foz do rio Mississippi, onde foi fundada a cidade de Nova Orléans, em 1718, em homenagem ao regente. A chance de se livrar de títulos que valiam um terço do valor nominal fez com que houvesse uma corrida pela compra de ações na empresa e fomentou a especulação com essas ações.
Além da criação desse sistema de crédito, Law diminuiu as tarifas aduaneiras que eram impostas no comércio interno, fez uma distribuição de terras de propriedade da Igreja e de corporações aos camponeses. Investiu na melhoria da infraestrutura do país, organizando a construção de pontes, rodovias e canais. Concretizou uma expansão industrial de 60% ao longo de 1719-1720, pela diminuição dos juros sobre os empréstimos. Com mais dinheiro circulando na economia, devido não só ao frenesi causado pela negociação das ações da Companhia das Índias, mas pela diminuição do peso do Estado sobre os agentes privados, a agricultura, a indústria e o comércio floresceram.
Por outro lado, a negociação das ações acabou tornando-se uma pirâmide financeira, e quando chegaram notícias das dificuldades enfrentadas pelos colonos na exploração da Luisiana todos quiseram ao mesmo tempo livrar-se das ações, garantidas pelas reservas nacionais. Os que chegaram primeiro e os bem conectados conseguiram trocar suas ações pelo ouro do Tesouro francês. Outros perderam muito dinheiro, já que as ações, que no seu auge valiam 12.000 livres, acabaram sendo negociadas ao final por 200 livres, e para diminuir os prejuízos o governo ofereceu em troca dos títulos podres direitos sobre as receitas governamentais mediante descontos do valor de face que variaram de 16 a 95%. Law, que também tinha investido todo seu dinheiro na Companhia, foi demitido pelo Regente em dezembro de 1720 e foi embora para Veneza, com sua mulher e filha, vivendo lá na pobreza e na obscuridade até sua morte.
Dessa maneira, por mais que a expansão monetária criada pelo sistema de Law tenha causado depreciação da moeda, inflação e caos quando a bolha estourou, ela conseguiu fazer com que o Estado francês se livrasse da dívida herdada de Luís XIV, o que permite dizer que Philippe D’Orléans foi bem-sucedido em abordar o problema da falência em que se encontrava o Tesouro Público e houvesse uma recuperação econômica que superou a estagnação causada pelas guerras do rei-Sol e pela perseguição de grupos produtivos de pessoas, como os huguenotes. Isso é o que foi feito em termos financeiros e econômicos. Agora tratemos de falar sobre o que não foi feito.
O Regente morreu de um ataque apoplético aos 49 anos, nos braços de uma amante, depois de Luís XV ter sido declarado maior aos 13 anos e ter manifestado seu desejo de que seu primo continuasse à frente dos negócios públicos. É de se supor que Philippe, que nos seus oito anos no poder sempre trabalhou para que a França não se envolvesse em guerras, tivesse tido uma influência benéfica sobre o reinado de Luís XV (1715-1774) que poderia ter evitado a participação da França na Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748) a qual, juntamente com a participação, já sob o reinado de Luís XVI (1774-1792), na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783) contribuíram para que o Estado se tornasse novamente endividado e falido, o que foi um dos fatores que desencadearam a Revolução Francesa, em 1789.
E qual o motivo dessa morte prematura, que teve tantas repercussões inesperadas sobre a história do país? Conforme o trecho que abre este artigo, Philippe, apesar de ser um homem preparado intelectualmente para governar, pois estava mais em sintonia com os novos tempos de livre-pensamento do que seu tio, limitado por seus preconceitos religiosos, entregou-se sempre aos excessos da bebida e do sexo. Nunca deu ouvidos aos médicos que diziam que se ele continuasse com sua vida desregrada iria morrer logo. A maioria de nós diria que foi um homem vencido pelo prazer, a despeito da sua capacidade de pensar e de formular soluções para os problemas que encontrou quando esteve à frente do governo francês. Sócrates tinha uma opinião diferente, a que Daniel R. N. Lopes, o tradutor do Protágoras, dá o nome de intelectualismo socrático.
Conforme o trecho que abre este artigo, o conhecimento leva à virtude e mesmo que se adote a posição hedonista de que o prazer e o bem são a mesma coisa, o conhecimento permite ao homem evitar o erro de escolher o que é mal do ponto de vista ético por ser prazeroso porque o conhecimento nos dá a arte da medida: ele permite pesar os prós e os contras de uma determinada atitude, considerando o efeito que ela terá no curto e no longo prazo. Assim é que um beberrão inveterado e viciado em sexo como Philippe d’Orléans, estava sujeito, aos olhos de Sócrates, não ao domínio do prazer em detrimento da razão, mas ao domínio da ignorância que lhe impedia de chegar à verdade. Se ele soubesse dos efeitos acumulados do seu excesso de álcool, do seu excesso de doenças venéreas, do sofrimento físico que eles iriam lhe causar, do mal que sua morte precoce causaria em um menino de 13 anos que perdeu com ele o último membro da sua família, ele teria decidido que tais prazeres não eram prazeres autênticos, mas aparentes, que na verdade traziam dor no longo prazo, de forma que os malefícios eram maiores do que os benefícios. Sob essa perspectiva, mesmo um hedonista, regido pelo prazer, pode ter uma vida ética se ele tiver acesso ao conhecimento que lhe permite chegar à justa medida do que usufruir no presente e do que evitar no futuro e vice-versa.
Prezados leitores, virtude para quê? O talento desperdiçado do Regente, que tanto fez falta depois na história do país, o que contribuiu para a queda da Monarquia e para a onda de violência e destruição que tomou conta do país por pelo menos 10 anos, até a ascensão de Napoleão em 1799, teria sido mais bem aproveitado se Philippe não tivesse se autodestruído em sua busca ignorante pela satisfação imediata. À luz das lições socráticas, a virtude serve para dar a correta medida do prazer, permitindo que aquele que dele desfruta tenha um efeito benéfico sobre si mesmo e sobre os que o rodeiam aqui e na eternidade.