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O arbítrio é livre?

Posted by on 23/08/2023

Reflita sobre o contexto em que sua próxima decisão será tomada. […] Você não escolheu seus pais, você não escolheu seus genes, você não escolheu as interações ou o efeito que eles tiveram sobre você, o efeito de todos os acontecimentos e conversas e exposições a ideias que você teve ao longo da vida.

Trecho da palestra sobre o livre-arbítrio proferida por Sam Harris (1967-) filósofo e neurocientista americano em 25 de março de 2012 na Califórnia

Somos livres na medida em que nos é permitido expressar nossa natureza ou nossos desejos sem obstáculos externos; não somos livres para escolher nossa própria natureza ou nossos desejos; nós somos os nossos desejos. “Não há em nenhuma mente a vontade absoluta ou o livre-arbítrio, mas a mente é determinada de forma a querer isso ou aquilo por uma causa que por sua vez é determinada por outra causa, e esta por sua vez por outra, e assim infinitamente.” ”Os homens consideram-se livres porque eles têm consciência das suas volições e desejos, mas ignoram as causas que os levam a querer e desejar”.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu apresentei a vocês Sam Harris, que faz parte do grupo dos Novos Ateístas, os quais procuram combater a religião, que consideram como uma ideologia nefasta, questionando os argumentos que a sustentam. Entre esses argumentos está o de que a religião é a única fonte sólida da moralidade humana, tratado em “Céu e inferno para quê?”. Nesta semana tratarei de outro argumento, o do livre-arbítrio, também abordado pelo filósofo e neurocientista americano. Mas em fazendo isso, aproximarei as ideias buriladas no século XXI, à luz das descobertas da neurociência, das ideias de um filósofo do século XVII, Baruch Spinoza, criadas no contexto das ferozes disputas entre católicos e protestantes, e das disputas mais gerais entre aqueles que viam a Bíblia como a palavra de Deus e aqueles que a respeitavam no máximo como uma fonte de ensinamento moral por meio das suas narrativas. Meu objetivo é o de revelar a semelhança entre a concepção de um e de outro.

    Um dos pressupostos fundamentais da religião cristã, explicado pelo mito de Adão e Eva, é que o homem é livre para escolher entre o bem e o mal, e se escolhe o mal comete pecado e deve ser punido como retribuição. Na palestra que Sam Harris proferiu há mais de 10 anos nos Estados Unidos, ele desconstrói o conceito de livre-arbítrio com base nas evidências das imagens de ressonância magnética do cérebro quando ele está em ação. Essas imagens revelam que quando tomamos consciência daquilo que decidimos fazer, a decisão já havia sido tomada antes na mente, o que é demonstrado pelo acionamento prévio do córtex cerebral. Nossa mente não para de funcionar, ela está a todo momento produzindo pensamentos, imagens e memórias sobre os quais não temos controle: não sabemos o que iremos pensar, imaginar ou lembrar daqui a pouco, a única coisa que nos é possível é observar esses processos se desenrolando como seres conscientes que somos.

    Ora, conforme o trecho que abre este artigo, Spinoza chegou a essa mesma conclusão não por ter acesso aos resultados de testes aplicados a pessoas submetidas a exames de mapeamento da atividade cerebral, mas por conceber o homem como um ser imerso na Natureza e, portanto, submetido às suas leis inexoráveis. A mente humana é um conjunto de desejos e volições que tem suas próprias causas, independentes da consciência humana: nós não escolhemos desejar algo, já que o objeto do nosso desejo depende da nossa natureza.

    Daí que tanto Spinoza quanto Harris consideram que o homem na verdade não escolhe nada, porque ele não escolhe sua própria natureza, não escolhe os tipos de pensamentos que ele normalmente tem, não escolhe as interações com o meio ambiente, o modo como as experiências moldam as emoções e as ideias. Harris fala dos genes, um conceito biológico que obviamente Spinoza não conhecia, mas que poderia ser colocado sob o guarda-chuva da natureza mencionada pelo filósofo holandês.

    Qual a repercussão da falta de livre-arbítrio para a moralidade? Será que se o mito da escolha entre o bem e o mal não se sustenta isso significa que não podemos agir eticamente e não podemos ser responsabilizados pelos danos que causamos às outras pessoas pelos nossos atos? Nem Spinoza nem Harris consideram a ética abolida por isso. Segundo explicam Will e Ariel Durant em “A Era de Luís XIV”, Spinoza observa que a exortação dos moralistas, o estigma da condenação pública, a punição das autoridades, tudo isso serve como experiência para o indivíduo e é mais um dos fatores que contribuem para moldar seus desejos e determinar sua vontade. Harris, por sua vez, procura extrair as consequências da constatação da inexistência do livre-arbítrio para a formulação de políticas públicas de combate à criminalidade.

    Se o homem não escolhe seus genes, seus pais, o ambiente em que ele foi criado, conforme Harris fala no trecho da palestra que abre este artigo, ter ou não desvios comportamentais é uma questão de sorte ou falta dela, e a pessoa não pode ser castigada a título de retribuição, já que em última análise ela não tem culpa de ser o que é, de desejar o que deseja, de imaginar o que imagina, de querer o que quer, de pensar o que pensa. Colocar um indivíduo na cadeia por matar alguém não deve ser ato de vingança, mas uma tentativa de mitigação de danos: se a pessoa encarcerada não praticar mais atos homicidas a sociedade ficará melhor. Nesse sentido, saber que o ser humano segue sua própria natureza deve ser fonte de empatia dos mais afortunados, que não sofrem de psicopatias, de compulsões, de vícios, pelos menos afortunados, que fazem coisas imorais porque está na sua natureza fazê-lo. Em suma, não escolhemos escolher o que escolhemos: na medida em que escolhemos o mal devemos ser punidos para o bem da sociedade, mas na medida em que não escolhemos escolher o mal não devemos ser objeto de ódio e vingança, mas de entendimento e remediação.

    Prezados leitores, Sam Harris coloca-se como um ateu, Spinoza não se via como ateu, mas foi descrito como um ateu intoxicado por Deus, porque ele considerava que Deus era a natureza como um todo e sua ordem imutável. Não sei se Harris leu Spinoza e se eu estivesse presente a uma palestra dele eu certamente leria as palavras do filósofo holandês para perguntar-lhe se ele reconhecia suas ideias sobre a inexistência de livre-arbítrio. De qualquer forma, a conclusão a que chegaram é mais um argumento que solapa as concepções religiosas tradicionais. Será que ter uma consciência apenas espectadora, mas não produtora dos processos mentais, diminui a nossa dignidade humana? Deixo a pergunta para a reflexão de vocês.  A mensagem final

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