[…] a finalidade do diálogo não seria simplesmente levar o adversário a se contradizer, deixando-o em situação embaraçosa diante de seu próprio público, mas buscar esclarecer o problema em questão, em vista do conhecimento, ainda que o resultado não fosse plenamente satisfatório. […]Segundo Pródico, quando a relação entre os interlocutores é mediada pelo sentimento de philia, uma discórdia entre eles sobre algum ponto na discussão, não implica que um almeja derrotar o outro; pelo contrário, a discórdia é natural e está na base de qualquer investigação comum que vise a um consenso. […]No caso de uma relação de inimizade entre os interlocutores, todavia, a discórdia se converte, de pronto, em disputa, cujo fim é antes derrotar o adversário, sem qualquer motivação benevolente de um para com o outro.
Trechos retirados do ensaio “A Crise do diálogo e a inversão dos papéis” escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.)
Nós temos certeza que as formas e as qualidades das coisas podem ser mais bem explicadas pelos princípios da mecânica, e que todos os efeitos da Natureza são produzidos pelo movimento, pela figura, pela textura e pelas várias combinações deles; e que não há necessidade de recorrer a formas inexplicáveis e a qualidades ocultas, como um refúgio contra a ignorância.
Trecho da carta do secretário da Royal Society, Henry Oldenburg (1615-1677) ao filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), sobre os objetivos da academia de ciências da Inglaterra criada em 15 de julho de 1662
Prezados leitores, é meu objetivo neste humilde espaço utilizar o pouco que sei da sabedoria acumulada ao longo da história para entender os problemas que enfrentamos hoje e propor soluções. Na semana passada, recorri ao filósofo inglês John Locke (1632-1704) para falar sobre a importância de cultivar hábitos saudáveis que nos permitam criar uma reserva cognitiva e assim enfrentarmos melhor o fantasma da demência que nos rondará cada vez mais quanto mais vivermos. Nesta semana, tentarei estabelecer a trilha do diálogo saudável, isto é, aquele que não descamba para a troca de insultos e de ofensas pessoais, mas busca o consenso para chegar a uma aproximação da verdade. Para isso, recorrerei novamente às lições dos diálogos platônicos nos quais o filósofo Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) aparece como personagem e procurarei um exemplo histórico da concretização desse ideal de discussão frutífera de ideias, que passa ao largo das disputas ideológicas que infelizmente hoje são a norma nas plataformas digitais.
No diálogo “Protágoras”, conforme o trecho que abre este artigo incluído em um capítulo que serve de comentário ao conteúdo da obra, é feita uma distinção entre o diálogo de orientação filosófica e o diálogo de orientação agonística. No primeiro, a relação entre os interlocutores é cordial, pois predomina o sentimento de amizade (em grego philia) entre pessoas que têm um objetivo comum: chegar à solução de um problema colocado como objeto da investigação intelectual, seja a definição de um conceito (por exemplo, o que é a virtude?), seja a verificação se uma proposição é verdadeira ou não (por exemplo, as virtudes são todas uma só ou cada uma delas tem sua própria característica?). Para atingir tal meta, os interlocutores, bem dispostos um ao outro, concordam em chegar a um consenso sobre determinadas premissas que servirão como ponto de partida para a discussão. Não há certeza de que o problema posto no início será resolvido e chegar-se-á a uma resposta, mas de qualquer forma o caminho percorrido de mãos dadas pelos participantes do diálogo lhes permitirá perceber suas próprias falhas e aprimorar suas ideias, pois cada um deles ouve o outro e está disposto a aprender com o outro e a ensinar ao outro.
Ao contrário, no diálogo de orientação agonística, não há o sentimento de philia permeando a troca de ideias, mas a inimizade entre os interlocutores, a qual interfere na discussão, transformando-a em um agon logon, uma contenda verbal. Ausente a boa vontade recíproca, nenhum dos interlocutores está disposto a conceder algo ao outro e a admitir rever suas ideias pela confrontação com ideias alheias. Sendo o interlocutor o inimigo, o objetivo é vencê-lo na disputa, mostrar à plateia que os assiste, em um banquete na casa de alguém ou na ágora, que ele está errado, que ele é ignorante e estúpido. Para isso qualquer arma vale: correções da gramática e do estilo do discurso do outro, ataques à sua conduta na vida pública e privada. O resultado de um agon logon passa ao largo do esclarecimento de algum problema filosófico, concentrando-se na destruição da reputação na sociedade do inimigo que foi incapaz de responder aos argumentos propostos pela parte contrária. No diálogo agonístico há a tese vencedora e a tese perdedora, o que não quer dizer que necessariamente tenha havido um aumento do conhecimento das partes envolvidas.
Feita a distinção entre um e outro, cabe agora cavoucar na história um exemplo de diálogo filosófico na prática. Ele pode ser encontrado no século XVII sob os auspícios da Royal Society que, conforme o trecho que abre este artigo, tinha como objetivo dar explicações sobre o funcionamento do mundo que fossem livres de superstições, de agentes invisíveis e inexplicáveis, mas que tivessem como foco as relações de causa e efeito ancoradas na percepção e descrição dos fenômenos naturais. E assim os membros da Royal Society fizeram, utilizando como veículo uma publicação própria, The Philosophical Transactions of the Royal Society, iniciada em 1665, que recebia e solicitava contribuições de filósofos e cientistas. Além de promover discussões por meio da sua revista, a Royal Society atuava como editora, publicando obras científicas. Entre elas, está a Philosophiae Naturalis Principia Matematica, de Isaac Newton (1642-1727), em que o físico e matemático inglês expôs sua teoria da gravitação universal e a demonstrou matematicamente. A polêmica em torno da Principia mostra o diálogo filosófico em ação, para o bem da ciência.
Houve muitas críticas dirigidas à física newtoniana e destacarei aqui aquela feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), um dos pais do cálculo integral, juntamente com Newton. Para o matemático alemão, a não ser que Newton pudesse explicar o mecanismo de atuação da gravitação no espaço vazio sobre objetos a milhões de quilômetros de distância, a gravitação não poderia ser aceita como nada melhor do que uma palavra, pois ela parecia mais com as forças sobrenaturais tão ao gosto da religião que a Royal Society tinha por objetivo suplantar com suas explicações mecânicas e naturalísticas.
Como resposta às críticas, na segunda edição de sua obra Newton fez alguns esclarecimentos. Ele admitia não saber a natureza da gravitação, se era uma força que atuava no espaço vazio, se era um agente material ou imaterial, mas defendeu seu sistema com a famosa frase “Non fingo hypotheses” (Eu não invento hipóteses). O que quer que fosse a gravitação, ele descreveu seu comportamento e formulou as leis de acordo com as quais ela atuava, tudo com base na observação dos fenômenos e na aplicação da matemática a tais observações. O resultado era uma teoria que explicava o movimento de todos os objetos no universo e tinha a capacidade de prever a trajetória dos planetas e dos demais corpos celestes. As ressalvas de Leibniz não destruíram a reputação de Newton, nem sua contribuição à física, mas o levaram a esclarecer seu método dedutivo, o que contribuiu para o desenvolvimento da ciência até o século XX.
Prezados leitores, esperemos que o espírito dos membros da Royal Society, cheio de philia e de vontade de buscar a verdade pela cooperação mútua, seja um dia a regra nas praças digitais do século XXI. Se isso ocorrer, não só contribuiremos para o progresso da civilização pelo aumento do conhecimento, mas evitaremos o holocausto nuclear.