Zeus enviou justiça e pudor a todos os homens, pois todos devem cultivar ambos de um modo ou de outro, pois, caso contrário, a vida comunitária não seria possível. […]justiça e pudor, enquanto dádivas de Zeus, segundo a interpretação do mito oferecida por Protágoras, não são vistas por ele como certa disposição que os homens possuem por natureza (pois, se assim o fosse, a questão da ensinabilidade da virtude não se colocaria, tampouco teria utilidade o ofício do sofista), mas como a capacidade política a ser desenvolvida, capacidade esta que distinguiria o homem dos animais.
Trecho retirado do ensaio “A construção da figura do sofista no Protágoras”, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução à sua tradução do diálogo “Protágoras”, de Platão (427 a.C.-347 a.C.)
Com a difusão de constituições democráticas durante o século quinto, tornou-se importante ser capaz de fazer discursos. Essa necessidade era atendida pelos professores de retórica. Da mesma maneira, havia professores de política, que instruíam os discípulos a como gerir os assuntos na assembleia. Finalmente, havia professores de disputas argumentativas, ou erística, homens que conseguiam fazer com que o pior argumento parecesse o melhor. […]É importante distinguir a erística da dialética. Aqueles que praticam a primeira querem ganhar, ao passo que os dialéticos estão tentando descobrir a verdade. É realmente a diferença entre debate e discussão.
Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970)
Hoje o centro político tem uma importância e uma relevância muito grande para qualquer governante. Nós viemos de uma eleição muito polarizada, muito radicalizada e o centro político é o pêndulo ali que pode ajudar o Brasil a crescer. Antigamente se falava no centrão como uma coisa pejorativa. Agora o centrão já está virando uma coisa positiva.
Trecho da entrevista dada por Celso Sabino, recém-nomeado ministro do Turismo, ao jornal Folha de São Paulo
Prezados leitores, no artigo “A medida das coisas” publicado em 7 de setembro de 2021, já tratei do filósofo Protágoras (481 a.C.-411 a.C.) e de sua filosofia pragmática e relativista, encapsulada no aforismo “O homem é a medida de todas as coisas”, o que significa tanto que não há verdadeiro conhecimento, pois o homem está irremediavelmente preso aos seus sentidos enganadores, e que o homem usa suas faculdades intelectuais para conduzir seus assuntos práticos, aquilo que lhe diz respeito na vida cotidiana. Nesta semana, explorarei outro significado do aforismo, por meio do enfoque de alguns aspectos da educação baseada nas ideias de Protágoras, a chamada educação sofística.
Conforme o trecho de Bertrand Russell que abre este artigo, havia uma necessidade na Grécia do século V, de um treinamento sobre como fazer discursos. Estes serviam tanto para que os cidadãos pudessem participar da tomada de decisões na assembleia e assim escolher um curso de ação para a pólis, como defender um argumento em um tribunal de justiça. O objetivo era que o indivíduo tivesse sucesso no seu empreendimento, seja convencendo seus concidadãos da conveniência de determinada política, seja convencendo um júri da inocência ou da culpabilidade de um acusado. Nesse sentido, a educação sofística viabiliza a prática democrática, pois permite a atividade do legislativo e do judiciário.
Sob esse viés pragmático, estamos longe aqui da preocupação socrática em buscar a definição mais completa e precisa de uma palavra, de modo a chegar ao menos a uma aproximação da verdade, mesmo porque a premissa básica dos seguidores de Protágoras é que a verdade é uma busca inútil, porque em última análise é inacessível para o homem. Assim, não seguiremos o caminho de Sócrates de lançarmos a dúvida sobre o sentido de uma palavra, inquirirmos nosso interlocutor e juntos, dialogicamente pelas perguntas e respostas, chegarmos a uma conclusão sobre tal sentido, ou até decidirmos que a palavra não tem sentido unívoco nenhum. O único caminho que dá resultados certos é seguir a via erística de argumentar para convencer e vencer, fazendo sua opinião prevalecer, independentemente de ela revelar mais ou menos conhecimento do assunto objeto da deliberação.
Cabe nesse ponto realçar uma outra dimensão do homem ser a medida de todas as coisas, além do pragmatismo. Conforme o trecho que abre este artigo, segundo Protágoras, Zeus deu ao homem e somente a ele, a dádiva da justiça e do pudor, sem os quais não é possível conviver em sociedade: cada indivíduo precisa cultivar a lei da pólis, estar ciente dos seus direitos e obrigações e saber quando agiu em violação a tais obrigações. O homem é a medida da vida em sociedade justamente porque só ele pode adquirir o senso de justiça, por meio da educação: a graça de Zeus imbuiu-lhe de um potencial que só pode ser concretizado pelo esforço individual de cada um na busca do seu aprimoramento moral, educando-se e preparando-se assim para viver em comunidade.
Sob essa perspectiva, o sucesso da educação sofística é medido pela capacidade do educando de participar das assembleias dos cidadãos e dos júris, produzindo argumentos convincentes, e de respeitar as leis da pólis, cumprindo suas obrigações e usufruindo dos seus direitos. Ela não faz o cidadão chegar à verdade pela autocrítica prezada por Sócrates, mas lhe proporciona meios de se fazer ouvir e ser acatado e assim fazer as rodas da democracia girarem em prol da tomada de decisões.
Considerando essas várias dimensões do homem como a medida de todas as coisas, como interpretar as palavras do novo Ministro do Turismo, Celso Sabino, indicado ao cargo por ter como principal qualificação ser aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, citadas na abertura deste artigo? Será que para a prática da democracia tanto faz definirmos o Centrão como um grupo de deputados e senadores adeptos do fisiologismo político ou o definirmos como o grupo que garante a governabilidade do país? Será que no frigir dos ovos o que interessa são os resultados concretos obtidos com as negociações entre Lula e o todo poderoso Arthur Lira e não investigar a verdadeira natureza do tal do Centrão? Ou será que as palavras de Celso Sabino são manipuladoras e escondem o toma-lá-dá-cá que engendra a corrupção, mina as instituições e impede qualquer projeto de longo prazo no Brasil que não seja ganhar as próximas eleições? Será que a busca da verdade bem ou mal não dá um balizamento ético às nossas ações? Para responder a essas perguntas só nos resta aguardar que os frutos dessas negociações, ou contemporizações ou negociatas, a depender do gosto de cada um, sejam colhidos logo. Enquanto isso, cada um de nós mede as coisas de acordo com seus próprios valores, pois conforme ensinou Protágoras, a opinião de cada homem é a verdade para ele.