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A sociedade privada dos robôs

Posted by on 05/04/2023

Precisamos, neste momento, de regulação e governança, de um debate multilateral, para direcionar essas mudanças. Será preciso mesmo substituir tantos postos de trabalho por automação? – questiona Gustavo Macedo, professor de Relações Internacionais e que também leciona a disciplina Ética e Inteligência Artificial no IBMEC – São Paulo.

Trecho retirado do artigo Entre Perdas e Ganhos, publicado no jornal O GLOBO de 2 de abril, sobre a nova era da Inteligência Artificial (IA) generativa, cujo símbolo atualmente é a ferramenta ChatGPT

Os sistemas contemporâneos de IA estão se tornando agora concorrentes dos seres humanos em tarefas gerais, e devemos nos perguntar: deveríamos deixar as máquinas inundar nossos canais de informação com propaganda e mentiras? deveríamos automatizar todos os trabalhos, incluindo aqueles que são gratificantes? deveríamos desenvolver mentes não humanas que no final das contas poderão nos ultrapassar em quantidade e inteligência, tornando-nos obsoletos e nos substituindo? deveríamos arriscar a perda do controle da nossa civilização? Tais decisões não devem ser delegadas a líderes da indústria de tecnologia não eleitos.

Trecho da carta aberta publicada no site do Future of Life Institute e assinada, entre outros, por Elon Musk (SpaceX, Tesla e Twitter), Steve Wosniak (co-fundador da Apple) e Yuval Noah Harari (autor e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém), solicitando uma pausa de seis meses no treinamento de sistemas de IA mas poderosos do que o GPT-4

A sociedade privada não é mantida pela convicção pública de que seus arranjos básicos são justos e bons por eles mesmos, mas pelos cálculos de todos, ou de um número de seus membros suficiente para manter o esquema, que qualquer mudança factível reduziria o conjunto de meios pelos quais eles perseguem seus fins pessoais. […] Assim podemos dizer seguindo Humboldt que é por meio da união social fundada nas necessidades e potencialidades de seus membros que cada pessoa pode participar da soma total dos ativos naturais realizados dos outros. Somos levados ao conceito de comunidade dos seres humanos, cujos membros aproveitam as excelências e as individualidades uns dos outros obtidas das instituições livres, e eles reconhecem o bem de cada membro como um elemento na atividade completa cujo esquema geral é aprovado por todos e oferece benefícios a todos.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

 

    Prezados leitores, as humildes explicações que tenho dado neste espaço a respeito do conceito de justiça de John Rawls poderia levá-los a crer que a sociedade vislumbrada pelo filósofo americano é simplesmente fundada em um contrato a que cada indivíduo adere por constatar que é a melhor opção para ele no longo prazo para perseguir seus planos de vida e satisfazer seus interesses. Se meus escritos deixaram essa impressão peço desculpas e licença para esclarecer que o contratualismo de Rawls é mais que isso,  porque ele faz a distinção entre uma sociedade privada e uma união social.

    Conforme o trecho citado acima, a sociedade privada é um arranjo pelo qual seres racionais na posição original escolhem certos princípios de distribuição de direitos e deveres cuja aplicação na prática por todos os membros permitirá que cada um persiga sua felicidade livremente, sem ser prejudicado por outros membros da sociedade. No final das contas, temos uma organização social que é simplesmente um conjunto de seres atomizados que vivem e deixam viver porque todos escolhem colocar em prática os princípios de justiça escolhidos originalmente e assim atuarão de maneira leal uns com os outros, sem interferirem e sem sofrerem interferência nos respectivos planos.

    A união social é mais que a sociedade privada, porque ela não é o produto exato da soma dos esforços autônomos de cada indivíduo. Ela é muito mais do que a soma dos membros da sociedade no sentido de que ao reunirem-se pelo pacto original, os indivíduos não estão simplesmente zelando pelo interesse próprio, mas aderindo a um conjunto de valores comuns que se concretizam no estabelecimento de instituições justas, de oportunidades para todos e no final na geração de bens sociais que serão compartilhados por todos. Em última análise, os membros da união social usufruem das conquistas obtidas por cada indivíduo porque sabem reconhecer-lhe a qualidade e em assim fazendo criam um sentimento de boa vontade no outro que tem como efeito prático aumentar a motivação de todos em prol da perseguição de metas, sejam quais forem, comuns ou individuais.

    De um lado então, indivíduos isolados, perseguindo seus objetivos de vida em uma sociedade que lhes dá a liberdade de fazê-lo. De outro, indivíduos unidos que pela cooperação mútua permitem o sucesso de cada um e o sucesso do todo que acaba sendo muto maior do que as partes que lhe deram origem. Para Rawls, a aplicação da visão contratualista e kantiana pela concessão de liberdades aos indivíduos não leva à atomização da sociedade, mas à construção de uma sociedade robusta e enriquecida pelas trocas entre indivíduos que são livres para seguir suas aptidões naturais e concretizar suas potencialidades.

    Essa dicotomia entre sociedade privada e união social é pertinente para analisarmos a encruzilhada em que nos encontramos neste momento em relação à disrupção que causará a evolução da chamada Inteligência Artificial generativa, que está substituindo a Inteligência Artificial analítica. Se a IA analítica era capaz de classificar e avaliar textos, reconhecer faces e imagens, a IA generativa vai muito além: ela cria textos, respondendo perguntas usando linguagem e estrutura gramatical que não podem ser distinguidas daquelas que um ser humano usaria; ela cria imagens, gráficos e vídeos. Isso abre uma janela sinistra de oportunidades em termos de tirar o trabalho de profissionais como advogados, jornalistas, professores, tradutores, médicos.

    O que devemos fazer? Simplesmente aceitar o fato e aplaudir a recente frase de Bill Gates: “A era da inteligência artificial começou”? Ou tentar refletir sobre as repercussões econômicas, sociais e políticas para os seres humanos do uso da IA para substituir não só o trabalho braçal quanto o intelectual, como querem os signatários da carta aberta mencionada no início deste artigo? À luz das lições de John Rawls, quem considera a primeira opção como a melhor está sob o paradigma da sociedade privada: o desenvolvimento da IA é inevitável e não há nada que possa ser feito, considerando que há um punhado de indivíduos atuando no setor de tecnologia cujo objetivo na vida é inovar sempre. Coibir os esforços deles seria tolher-lhes a liberdade individual e levá-los a querer fazer um distrato do contrato social ao qual aderiram, já que o arranjo não está mais propício à satisfação dos seus interesses.

    Ao contrário, quem considera que é preciso dar um tempo no desenvolvimento da IA, até que se estabeleçam mecanismos de governança, está sob o paradigma da união social: o aumento exponencial da produtividade e o enriquecimento de alguns dos membro da sociedade não pode ser obtido ao custo de tornar a vida de bilhões de pessoas irrelevante e sem significado, porque perde-se aí a motivação para a cooperação mútua: a IA deve estar sempre a serviço de todos, e mesmo que ela obviamente vá  beneficiar os líderes da tecnologia mais diretamente, ela jamais poderá ser um instrumento para prejudicar a vida dos membros da sociedade que não têm as aptidões necessárias para serem desenvolvedores de IA.

    Prezados leitores, a carta aberta está disponível para assinaturas: quem sabe se um número grande de adesões não pode sensibilizar as autoridades do mundo a começar a pensar em maneiras de controlar a IA para o bem da humanidade e não apenas de uma pequena parcela de privilegiados, que se locupletarão à custa da grande maioria. Esperemos que a união social predomine sobre a sociedade privada dos robôs.

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