Assim, a concepção mais estável de justiça presumivelmente é aquela que é inteligível à razão, congruente com nosso bem e alicerçada não na abnegação, mas na afirmação do eu. […] Assim, os vínculos gerados em uma sociedade bem ordenada regulada pelo critério da utilidade provavelmente varia de um setor a outro da sociedade. Alguns grupos podem adquirir pouco ou nenhum desejo de agir de maneira justa (agora de acordo com a definição dada pelo princípio utilitário) com uma perda correspondente na estabilidade.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
– Tenho máquina de lavar roupa, interruptores digitais e aquele robô aspirador, que anda sozinho. Quando passei a morar sozinho, percebi o valor do trabalho invisível que essas pessoas desempenham em casa – diz o engenheiro, que vê uma relação mais funcional com as profissionais agora.
Trecho retirado do artigo “Direitos no papel, carteira em branco – Dez anos após PEC das Domésticas, registradas dão lugar a diaristas”, publicado no jornal O Globo em 12 de março
Prezados leitores, há várias semanas tenho utilizado este meu humilde espaço para explicar-lhes a concepção de justiça de John Rawls e ilustrar os conceitos descritos por ele por meio de referências a acontecimentos cotidianos, na maioria das vezes, ou históricos, como fiz ao referir-me à vida de Maria Graham (1785-1842) e de Dona Maria I, Rainha de Portugal (1734-1816). Nesta semana, o objeto será a comparação que o filósofo político americano faz da sua justiça como equidade com a concepção utilitarista de justiça, para mostrar que a sua ideia de justiça, fundada na tradição filosófica e política contratualista, é melhor porque revela-se mais estável a longo prazo.
Como vimos ao longo desse tempo dedicado a destrinchar o livro de John Rawls, a concepção de justiça como equidade é fundada nos direitos fundamentais garantidos para todos, na proibição de que melhorias para um grupo sejam obtidas às custas de outro grupo social e na exigência de que as melhorias para um grupo devem também implicar melhorias para outro grupo, mesmo que a intensidade das respectivas melhorias sejam diferentes. Ora, a concepção utilitarista não faz nenhuma ressalva para garantir as liberdades e oportunidades para todos.
Isso porque o foco dela é atingir um balanço geral de benefícios maior do que aquele que seria obtido sem que houvesse a aplicação do conceito de utilidade para nortear as decisões sobre quais direitos e obrigações serão patrocinados na sociedade. Nesse caminho rumo ao saldo positivo de coisas úteis feitas para o bem comum pode haver o sacrifício das liberdades e oportunidades de certos indivíduos e grupos, de maneira que estes saiam perdendo. A justificativa para a tolerância a que alguns membros da sociedade piorem de situação é que comparativamente ao que a sociedade possuía em termos de bens materiais e imateriais antes do advento da sociedade fundada no utilitarismo, a situação atual é melhor no geral, isto é o que foi criado de bom compensou o custo dessa criação.
Essa explicação nos permite ver a instabilidade inerente à concepção utilitarista, conforme o trecho que abre este artigo: aqueles cuja situação piora não adquirirão o sentimento de justiça da mesma maneira que o fariam sob um regime contratualista: não tendo os perdedores nada a ganhar desse arranjo, seu comprometimento em aderir a regras de conduta fundadas em bases utilitaristas só pode basear-se em uma abnegação que permita que eles aceitem não gozar nem da chance nem da oportunidade de perseguir seus objetivos pessoais em prol do bem-estar social. No entanto, a abnegação não é um sentimento que brota frequentemente no ser humano. Tomá-lo como pilar da organização de toda uma sociedade é temerário pelo fato de que a maior parte dos seus membros não terá a predisposição necessária para que esse arranjo funcione.
Mais seguro, segundo explica John Rawls, é utilizar outro meio de sustentação, qual seja, um sentimento mais comum no ser humano: o desejo de satisfazer seus próprios interesses. Em uma sociedade que concede liberdades fundamentais para todos, as reivindicações dos indivíduos não serão descartadas a priori, em prol de um bem maior, justamente porque o bem maior nessa sociedade é a possibilidade de que cada indivíduo possa perseguir seus objetivos de vida, de maneira desimpedida, sim, considerando as limitações fáticas, mas nunca em detrimento dos direitos próprios e daqueles que o rodeiam.
Nesse sentido, a concepção da justiça como equidade funda-se na reciprocidade entre os indivíduos: há um respeito mútuo pelos interesses e valores de cada um, pois cada um deles sabe que o seu mínimo de liberdades e oportunidades será garantido em quaisquer circunstâncias, independentemente de qualquer avaliação sobre se esse pacote básico criará ou não bens sociais. Pode ser que criem e o saldo ao final seja positivo, e mesmo que não criem o importante é que a dignidade e o respeito próprio de cada um serão mantidos, porque cada membro sabe que ele não é mero instrumento de algo que o ultrapassa e que é mais importante que ele, mas tem valor em si mesmo.
Daí porque a sociedade fundada em uma concepção de justiça como equidade ser mais estável do que uma sociedade fundada em uma concepção de justiça utilitarista. A reciprocidade estimula a confiança mútua, a confiança mútua estimula cada membro a fazer o certo porque ele se beneficia desse esquema e esse esquema beneficia aqueles nos quais ele tem confiança, pois eles o respeitam. Cria-se um círculo virtuoso em que todos os interesses próprios reunidos conspiram em favor de uma organização social em que a cada um é dada a chance de concretizar seu plano de vida, independentemente de uma avaliação prévia da sua utilidade para a sociedade.
O ser humano como sujeito de direitos inalienáveis, não como instrumento de quem quer e do que quer que seja. Será que os desafios por que passam as empregadas domésticas no Brasil não ilustram esse conflito entre uma visão utilitarista e uma visão contratualista? Conforme explica o artigo “Direitos no papel, carteira em branco”, em abril de 2013, por meio da chamada PEC das Domésticas, os congressistas brasileiros garantiram direitos trabalhistas às empregadas domésticas, incluindo previdência, auxílio-doença, licença-maternidade, férias, décimo terceiro, jornada de oito horas, seguro-desemprego, FGTS e indenização em caso de demissão sem justa causa.
Na prática, assim como o engenheiro entrevistado pelo jornal para a reportagem, cuja fala é citada na abertura deste artigo, muitos de nós brasileiros vemos nossas “assistentes” como instrumentos do nosso bem-estar doméstico, instrumentos estes que podem ser substituíveis por seus congêneres eletrônicos. Imbuídos dessa visão instrumentalista, fazemos malabarismos para satisfazer nossos interesses em detrimentos dos das domésticas. Não as registramos em carteira, contratamos no máximo duas vezes por semana para não correr riscos e sempre temos a desculpa na ponta da língua que não temos dinheiro para arcar com os custos dos direitos trabalhistas.
É verdade que no cômputo geral há muitos benefícios agregados: a classe média economiza dinheiro, as empregadas podem obter um salário maior em dinheiro, de posse de dinheiro as empregadas podem consumir, fazendo a roda da economia girar. Mas em termos do respeito mútuo entre os diferentes grupos sociais tudo fica muito a desejar: nós conseguimos reconhecer a importância para nós a longo prazo de trabalhar com carteira assinada, mas quanto a nós reconhecermos a imprescindibilidade do registro para nossos valiosos instrumentos domésticos, estamos muito longe disso: o nosso interesse próprio não pode ser sacrificado em prol das nossas domésticas. E assim as mantemos no limbo eterno das diaristas autônomas.
Prezados leitores, que um dia nossas utilidades domésticas sejam justas como preconizou Rawls, e não simplesmente úteis. Só assim teremos nos livrado de mais um ranço do nosso passado de escravidão.