Uma vez sendo aceita uma moralidade de princípios, no entanto, as atitudes morais não são mais ligadas somente ao bem-estar e à aprovação de determinados indivíduos e grupos, mas são moldadas por uma concepção de direito escolhida independentemente dessas contingências. […] O desejo de agir justamente não é, assim, uma forma de obediência cega a princípios arbitrários não relacionados aos objetivos racionais.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
Nem mesmo a presença do estado, com a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela no fim de 2011, foi capaz de frear a expansão do tráfico, como era o desejo de Joana da Paz. Hoje, a favela serve de base para bandidos do Morro Pavão-Pavãozinho, também em Copacabana, que têm planos de invadir o Morro Chapéu Mangueira, no Leme.
Trecho retirado do artigo intitulado “Cenário que não Muda”, sobre a ação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras em Copacabana, Rio de Janeiro, publicado no jornal O Globo em 26 de fevereiro
Prezados leitores, na semana passada, ao tentar explicar o ideal racionalista de justiça de John Rawls, eu afirmei neste humilde espaço que no mundo de seres conscientes dos seus interesses, desejos e objetivos de vida, as regras morais acabam se integrando à personalidade da pessoa e se tornam um arcabouço no qual ela florescerá, relacionando-se com seus pares, procurando a aprovação deles, e reconhecendo-lhes suas conquistas e em assim fazendo, tornando-se digno de respeito e capaz de respeitar os outros. Nesta semana, abordarei um outro conceito explicado por Rawls, o de moralidade dos princípios, que é o pináculo dessa justiça construída pelo homem racional e livre para o seu próprio benefício material e espiritual. É o que o cientista político chama de moralidade dos princípios.
Conforme o trecho que abre este artigo, a moralidade dos princípios é o terceiro estágio de desenvolvimento do senso moral. Ele não está mais ligado ao temor reverencial de uma autoridade, como acontece com as crianças; nem está ligado à obediência de regras de determinada sociedade para ser aceito e admirado pelos membros como parte do grupo. Nesse último estágio, os nossos sentimentos morais existem e se expressam por atitudes morais independentemente das contingências do momento, independentemente de haver modelos de conduta aos quais aspiramos, seja na figura de membros da família ou de membros de alguma associação à qual pertencemos, independentemente de haver punições aos que descumprem as leis, independentemente de haver um aparato estatal do qual possamos temer o poder.
Dessa forma, livre dos acidentes do momento, o homem racional e livre escolhe manter-se fiel a princípios de justiça porque ele entrou em um círculo virtuoso em que obedecer permite a ele satisfazer suas necessidades de alimentação e saúde, mas também seus objetivos de vida, e tal florescimento do indivíduo o faz ter confiança nas instituições que lhe garantiram a liberdade e a igualdade de oportunidades necessárias para que seguir as leis fosse um bom negócio. Com confiança nas instituições, o homem racional e livre age no mundo para solidificá-las, consolidando assim o ambiente para a prosperidade de todos e a possibilidade de que possam concretizar as mais diversas metas. Essa é a sociedade bem ordenada de Rawls: a sociedade em que seguir as regras do jogo não é questão de imposição de uma autoridade arbitrária, mas um privilégio de membros da sociedade que descobriram a melhor maneira de atingir seus objetivos no longo prazo, por meio da cooperação social.
É de se perguntar se alguma sociedade concreta colocou em prática esse ideal racional ou está perto de fazê-lo. No Brasil temos indícios claros em várias esferas de que estamos longe de chegarmos ao estágio da moralidade dos princípios. O caso do tráfico de drogas no Rio ilustra que estamos ainda patinando na moralidade da autoridade. Explico-me, descrevendo o contexto do artigo citado acima, que menciona a morte em Salvador de Joana Zeferino da Paz, uma senhora de 97 anos que na década de 90 filmava da sua janela a movimentação dos bandidos na Ladeira dos Tabajaras em Copacabana.
Suas filmagens serviram de prova para o Estado colocar na cadeia mais de 30 criminosos, incluindo policiais militares acusados de receberem propinas. A ação repressora teve continuidade em 2011, conforme o trecho que abre este artigo, quando foi implantada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), sinalizando a presença do Estado como a autoridade máxima do local, depois do aniquilamento dos traficantes, seja pelas mortes em confronto com as forças policiais, seja pela atuação do Poder Judiciário, condenando-os à prisão. Será que as UPPs ao menos criaram o temor reverencial dos habitantes da favela, incluindo os praticantes de atos ilícitos entre eles, estimulando-os a trilhar o caminho da lei? Será que foi criado um novo senso comunitário na favela, em que os moradores, livres da influência negativa dos traficantes, começaram a atuar para obter o respeito e a admiração dos seus pares de formas mutuamente benéficas?
Por razões cuja complexidade é tamanha que não cabem neste humilde espaço, a resposta é um sonoro não. Conforme descreve o artigo “Cenário que não Muda”, males que a câmera de dona Joana da Paz flagrou há 30 anos estão ainda lá: crianças consumindo drogas, a ostentação de armas para mostrar controle, o consumo de drogas por mulheres nas escadarias, crimes praticados à luz do dia, com a cara à mostra. Instituições, na concepção racionalista de Rawls, não existem na Ladeira dos Tabajaras: há a força bruta, arbitrária dos traficantes que desrespeitam as leis flagrantemente e a força policial representada pelas UPPs que não conseguiu inculcar na população confiança suficiente no seu poder de oferecer oportunidades e igualdade para todos de maneira que as pessoas aderissem de bom grado à ordem oficial.
O resultado dessa mixórdia é que os habitantes das favelas do Rio de Janeiro ficam submetidos às arbitrariedades dos traficantes de um lado e das milícias de outro, não se podendo esquecer que eles mesmos contribuem para que nada mude aderindo a pequenas ilicitudes como o Clube do Gato que descrevi aqui há duas semanas. No frigir dos ovos, os esforços do Estado brasileiro de se fazer presente na vida da população mais carente ainda não foram suficientes para a mudança de paradigmas: a obediência ocorre àqueles que mostram as armas, e o caminho encontrado pela maior parte da população é o de levar a vida seguindo o antigo adágio do manda quem pode obedece quem tem juízo. O juízo não dos cidadãos livres, iguais e prósperos, mas o dos indivíduos acovardados, sem perspectivas de melhoras significativas, vivendo em um meio hostil, que não dá margem a objetivos de vida e em que a única regra é ir levando para tentar sobreviver.
Prezados leitores, mutatis mutandis, o microcosmo das favelas dominadas pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro mostra as tormentas que nós brasileiros devemos superar para chegarmos ao céu de brigadeiro da moralidade dos princípios. Oxalá uma sociedade bem ordenada esteja ao alcance da próxima geração.