Sem o conhecimento adequado, a ação correta é impossível, com o conhecimento adequado a ação correta é inevitável. Os homens nunca fazem aquilo que eles sabem ser errado – isto é, irrefletido, danoso a eles mesmos. O maior bem é a felicidade e o melhor meio para ela é o conhecimento ou a inteligência.
Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981), sobre o filósofo grego Sócrates (470 a.C.-399 a.C.)
Sócrates: Que forma então de governo você acha que é essa dos bons arqueiros e flautistas, e também dos atletas e dos demais praticantes de uma arte, estando ainda misturados a eles aqueles de que falamos há pouco, os que sabem da guerra em si e do matar em si, e mais os oradores a bafejar sua bazófia política – mas com todos eles, sem exceção, sem o conhecimento do ótimo, e de quando e em relação a quem é melhor se valer de cada uma dessas artes?
Alcibíades: Uma forma de governo medíocre, Sócrates!
Trecho retirado do diálogo denominado “Alcibíades Segundo” entre Sócrates e Alcibíades (450 a.C. -404 a.C.), líder ateniense e discípulo de Sócrates
Prezados leitores, na semana passada afirmei neste meu humilde espaço que o pensador francês René Descartes (1596-1650) introduziu na filosofia o conceito de dúvida sistemática, pela qual haveria uma depuração dos pensamentos do indivíduo para ele chegar às ideias claras que pudessem servir de base a construções dedutivas e ao melhor entendimento do mundo. Mas tal percurso era solitário e o próprio Descartes descreve suas aventuras mentais no livro o Discurso do Método. Nesta semana, falarei novamente dessa busca pelo conhecimento na figura já tratada aqui de Sócrates, que explorava a dúvida no convívio social, na forma dialética dos diálogos que ele estabelece com seus discípulo e amigos.
A dialética socrática é um processo de mão dupla em que ele tenta descobrir as coisas fazendo perguntas a seus interlocutores e a partir das respostas semear dúvidas na mente deles. Em qualquer diálogo de Sócrates, a dúvida, a que os gregos chamavam aporia, era o meio de ir analisando os conceitos paulatinamente de modo a chegar a definições precisas. Assim é que Sócrates pede a seus interlocutores que lhe deem a definição de um conceito geral, como amor, justiça, filosofia, loucura ignorância, em relação ao qual as pessoas normalmente acham que têm algum conhecimento, já que são palavras que fazem parte da linguagem corrente. A definição dada a Sócrates é o ponto de partida para ele destrinchá-la revelando o quão é contraditória, absurda, incompleta ou inconsistente.
Em Alcibíades Segundo, Sócrates pergunta ao seu pupilo: “você não supõe que é preciso ter muita prudência para não se clamar, sem perceber, por grandes males supondo que são bens, e os deuses calharem de estar naquela posição em que dão as coisas pelas quais alguém calha de clamar? Essa pergunta inicia a discussão sobre a insensatez, a loucura e a ignorância. O homem muitas vezes pede aos deuses – e lhes oferece holocaustos para ter seu pedido satisfeito – coisas que quando concretizadas prejudicam aquele que clamou pela intervenção divina. E quando a desgraça acontece o homem tende a culpar os deuses, como se estes tivessem sido responsáveis. Aqui chega-se à encruzilhada da aporia socrática: de um lado a ideia de que os deuses controlam tudo, inclusive nossa própria loucura, amaldiçoando-nos com ela quando satisfazem nossos pedidos insensatos que nos fazem sofrer; de outro a ideia de que o homem não é governado pelos decretos inexoráveis dos céus: ele faz suas escolhas e deve ser responsabilizado por elas.
Assim, uma vez o confronto entre ideias incompatíveis é detectado, o diálogo entre Sócrates e Alcibíades vai produzindo frutos, surgindo uma definição do que é ser insensato: ser insensato, não é ser amaldiçoado com alguma loucura pelos deuses, ser insensato é ser ignorante e ser ignorante é não saber o que fazer no momento certo e com as pessoas certas. Conforme mostra o trecho que abre este artigo, é preciso ter conhecimento do ótimo, isto é, do que de maneira específica e prática trará benefícios e não malefícios. Um indivíduo pode ter conhecimento de como conduzir uma guerra, o outro pode ter conhecimento de como falar bem: mas esse conhecimento só será ótimo se o guerreiro souber quando começar uma guerra, quando pará-la e contra quem fazê-la; e se o orador souber o que falar, em que momento falar e a quem falar.
Se há um conhecimento ótimo, há uma relação entre conhecimento e virtude: só se atinge o bem por meio do conhecimento, pois é por meio da tentativa de superação da ignorância que o homem consegue conhecer a si mesmo e as outros, adquirindo assim a virtude da temperança que o leva a escolher o melhor caminho, livre das paixões que muitas vezes impelem o homem a tomar decisões que causam mais mal do que bem. Quando o homem pede algo aos deuses dominado pela paixão, pela falta de conhecimento do caminho virtuoso, ele sofre as consequências da sua má escolha. As desgraças humanas não são obra de nenhuma divindade, mas da ignorância do indivíduo que não adquiriu o conhecimento suficiente para escolher o que seria mais benéfico.
Para o filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970), essa associação que Sócrates faz do bem com o conhecimento é a principal marca deixada pelo filósofo sobre o pensamento grego. Nesse sentido, a ética ancorada na superação da ignorância e das paixões e na busca do conhecimento como bem supremo é diametralmente oposta à ética cristã, fundada na virtude de um coração puro, inocente. Afinal, sob a ótica do cristianismo, somente as pessoas que não conhecem a si mesmas, os ignorantes, poderão ter um coração puro e ser virtuosas, pois aqueles que já olharam para dentro de si e reconheceram suas paixões e suas fraquezas já perderam a inocência.
Prezados leitores: dúvida sobre si, dúvida sobre seus pensamentos, dúvida sobre suas definições, dúvida sobre suas verdadeiras motivações. Tanto Sócrates quanto René Descartes, cada qual com seu método e com seus próprios objetivos, nos deixaram a lição da razão como o maior bem do ser humano. Que o diálogo socrático e a dúvida cartesiana possam nos servir de bússolas nesses tempos de ideologias e paixões irreconciliáveis.