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Ostracismo Verde

Posted by on 15/11/2022

Ação e reflexão são atividades que exigem, cada uma separadamente, qualidades que mutuamente se repelem. São bem raros os que possuem ambas; mesmo nestes casos, haverá que, mais cedo ou mais tarde, melhor mais cedo do que mais tarde, optar pelo exercício exclusivo de uma delas sob pena de não se realizar em nenhuma. A biografia do secretário florentino é um caso-limite do fenômeno que se repete todos os dias, do homem de talento disposto a vender a alma ao Diabo e preparado para sacrificar a formulação de suas ideias, por mais inteligentes que lhe pareçam, à satisfação passageira de haver impingido ao príncipe de plantão ao menos uma parte delas.

Trecho retirado do ensaio “À maneira de prólogo ou elogio do ostracismo”, escrito pelo historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello (1936-)

Até pouco tempo atrás, socialistas, comunistas, capitalistas, conservadores e progressistas, todos eram desenvolvimentistas. O planeta está dizendo que ele tem um limite e, por isso, a visão linear de uso indefinido da biodiversidade não cabe mais. Precisamos de um desenvolvimento sustentável e talvez o Brasil seja o país que reúne as melhores condições para ser o pioneiro nesse projeto viável. Sustentabilismo não é engessar a economia. É criar um novo ciclo de prosperidade.

Trecho retirado da entrevista dada por Marina Silva, recém eleita deputada federal por São Paulo à revista VEJA na edição de 16 de novembro

 

    Prezados leitores, o secretário florentino a que Evaldo Cabral de Mello faz referência no trecho que abre este artigo é nada mais nada menos do que Niccolò Machiavelli (1469-1527), o filósofo que iria escrever uma das principais obras de Ciência Política da história ocidental. Em 1512, o então secretário da Segunda Chancelaria florentina perdeu seu cargo devido à volta da família Medici ao poder, enterrando o regime republicano inaugurado 20 anos antes. Condenado ao ostracismo, Machiavel, como seu nome é escrito na língua portuguesa, refugiou-se na pequena propriedade que seu pai lhe deixou, chamada de San Casciano, a 30 quilômetros da cidade. Ali dedicou-se à gestão dos seus humildes negócios e à leitura dos historiadores clássicos, sobretudo Tito Lívio e Políbio. Sua recôndita esperança era que houvesse uma reversão da situação política na cidade e ele voltasse a cair nas graças dos donos do poder, para que pudesse colocar em prática, por meio de sua influência intelectual, seu programa político para a península itálica.

    E qual era esse programa? Era livrar a península da influência das potências estrangeiras, principalmente da Espanha e da França, que usavam o solo italiano como palco das suas disputas de geopolíticas e em o fazendo invadiram-no militarmente inúmeras vezes, causando destruição e desordem. Machiavel achava que um homem providencial e de resolução, pronto para exercer o poder da maneira que fosse necessária, como César Bórgia (1475-1507) e Fernando, o Católico (1452-1516), poderia unificar a península, acabar com as disputas entre as diferentes cidades e inaugurar uma era de paz e prosperidade, ainda que para tanto muita violência tivesse que ser perpetrada.

    Conforme explica Evaldo Cabral de Mello em seu ensaio, o sonho de Machiavel de exercer influência sobre os acontecimentos políticos na Península Itálica foi frustrado por completo. Quando da restauração mediciana ele foi nomeado historiador oficial e chegou a realizar duas ou três missões diplomáticas de pouca importância a cidades vizinhas, mas quando a república florentina foi restaurada após uma nova derrocada dos Medici, os novos republicanos não o convocaram para nada, pois ressentiram-se do fato de ele ter trabalhado para o governo anterior. Machiavel permaneceu em San Casciano até a morte e, com tempo de sobra para ler e refletir, escreveu O Príncipe, que expressava aquilo que na sua visão era necessário para viabilizar na prática a unificação italiana que, como sabemos, só ocorreu de fato mais de 300 anos depois, ao final do século XIX.

    Longe de lamentar a incapacidade do filósofo florentino de influenciar os eventos na sua terra natal, Evaldo considera que sem o ostracismo a que Machiavel foi forçado, ele não teria se dedicado àquilo que realmente sabia fazer, que era refletir e formular suas ideias para serem exploradas pelos seus conterrâneos e pelas futuras gerações. Machiavel, se tivesse conseguido algum cargo no governo florentino, teria sido medíocre porque não era um homem de ação e os homens de ação normalmente suspeitam dos intelectuais, que não têm que tomar decisões sobre os negócios públicos no dia a dia e portanto, podem dar-se ao luxo de entreter em sua mente grandes projetos. No frigir dos ovos, melhor para o pensamento político ocidental que Machiavel tenha desfrutado do ócio para maturar e escrever O Príncipe, do que ter perdido tempo de sua vida tentando fazer concretizar seu grand design da unificação italiana, dando conselhos a algum príncipe de carne e osso.

    Todo esse introito sobre as vicissitudes práticas e o triunfo intelectual de Niccolò Machiavelli serve para introduzir o tópico desta semana deste humilde artigo, o papel que Marina Silva exercerá no governo de Lula. Considerando que se espera uma grande virada em relação aos quatro anos de Jair Bolsonaro, em que houve aumento do desmatamento e enfraquecimento das estruturas de fiscalização do mau comportamento ambiental, Marina Silva poderá ser a guru de Lula, fornecendo-lhe um programa para a área.

    Como mostra o trecho citado da entrevista dada por Marina à VEJA, ideias não lhe faltam. Marina faz uma distinção entre desenvolvimentismo, perseguido como meta de crescimento econômico a despeito das externalidades ambientais por ele causadas, e desenvolvimento sustentável, que parte do pressuposto de que não se pode explorar a biodiversidade da Terra ad infinitum. E fazendo tal contraposição, ela chega a uma síntese no conceito de sustentabilismo, que gera prosperidade pela geração de empregos na bioeconomia, como no reflorestamento, no aproveitamento farmacológico da diversidade botânica do Brasil e na produção de energia limpa, isto é, sem a utilização de carvão, petróleo e gás. Não fica claro para todo mundo aonde a ex- Ministra do Meio Ambiente quer chegar?

    Sem dúvida, mas consideremos os fatos. Em 2008 ela pediu demissão do cargo porque discordava do Plano de Aceleração do Crescimento, que incluía a construção de duas gigantescas hidrelétricas no coração da Floresta Amazônica. Elas acabaram sendo construídas, Jirau, no Rio Madeira, que ficou pronta em 2013, e Belo Monte, no rio Xingu, que começou a funcionar em 2016 e Marina Silva denunciou que a pauta ambiental não era prioridade do governo petista. Será que as condições mudaram agora de tal maneira que a dileta amiga de Chico Mendes considere que se for Ministra do Meio Ambiente de Lula uma segunda vez ela terá mais sucesso em colocar em prática seu grand design?

    De fato, será que o nível de escolaridade dos brasileiros da Região Norte deu um tal salto de qualidade que será possível ter à disposição os recursos humanos necessários para, mediante os investimentos do governo, criar empregos de maior valor agregado no futuro, que não se limitem à exploração predatória da Floresta Amazônica, como o corte de madeira e a mineração? Os dados do IDEB, que medem a proficiência dos estudantes brasileiros do ensino fundamental e do ensino médio em português e matemática não são animadores: Pará teve nota 4,8 em 2021, Rondônia e Roraima 5,3, Acre 5,4, Amapá 4,7, Tocantins 5,1, Amazonas 5,3. Em suma nenhum dos Estados da Região Norte chegou ao desempenho dos melhores no ranking Ceará, São Paulo e Paraná, com 6,1.

    E quanto ao orçamento que o futuro Ministro do Meio Ambiente terá para, dentre outras atividades, criar novas reservas indígenas e aumentar o quadro de funcionários e melhorar a infraestrutura do IBAMA e do ICMBio, que realizam a fiscalização dos desmatamentos? A equipe de transição do governo Lula conseguiu dinheiro por quatro anos para manter a ajuda de 600 reais aos mais necessitados por meio de um acordo para furar o teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, que foi aprovada em 2016 e estabeleceu um limite aos gastos públicos por 20 anos. Será que o governo Lula conseguirá mais flexibilizações do teto para ter mais margem de investimentos? Ou será que o mercado financeiro reagirá mal a tal flexibilização, por receio de inviabilização do pagamento dos juros da dívida? Será que o novo governo, se insistir em mais exceções à regra do teto vencerá uma queda de braço com os donos dos títulos da dívida brasileira?

    Prezados leitores, essa pincelada nas condições sociais e políticas do Brasil permite-nos ver os desafios à execução de algum grand design ambiental e é nesse ponto que traço um paralelo entre Marina Silva e Niccolò Machiavelli. Será que nossa paladina da Floresta Amazônica terá capacidade e possibilidade de ser uma mulher de ação e causar impacto com sua agenda ambiental? Ou será que ela é melhor na formulação de ideias, mas na prática sempre falha em lidar com o desafio dos interesses conflitantes do dia a dia da política no Brasil? Será que Marina viverá um novo ostracismo, como ocorreu em 2008? E se isso de fato ocorrer será tão produtivo como foi o de Machiavel, que nos legou uma obra prima do pensamento político? Aguardemos.

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