Arranjando as desigualdades para que haja vantagens recíprocas e abstendo-se da exploração das contingências da natureza e das circunstâncias sociais em uma estrutura de liberdades iguais, as pessoas expressam seu respeito umas às outras na própria constituição da sociedade. Deste modo, elas garantem seu autorrespeito, já que é racional fazer isso.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)
O populismo envolve a divisão da cena social em dois campos. Essa divisão pressupõe a presença de alguns significantes privilegiados que condensam em si mesmos a significação de todo um campo antagônico (o ”regime”, a “oligarquia”, os “grupos dominantes” etc., para o inimigo; a “nação”, a “maioria silenciosa”, e assim por diante, para o oprimido desvalido – esses significantes adquirem esse papel articulador, de acordo, obviamente, com uma história contextual).
Trecho retirado do verbete da Wikipedia sobre a Revolução Bolivariana empreendida pelo presidente da Venezuela Hugo Chavez de 1999 até 2013
Prezados leitores, nesta semana abordo pela terceira vez neste meu humilde espaço a concepção de justiça que John Rawls desenvolve ao longo da obra acima mencionada. O foco será o contraponto entre uma visão utilitarista e uma visão equitativa do modo pelo qual seres racionais decidem organizar-se em sociedade e distribuir os ônus e os bônus. O objetivo deste contraponto é tentar aplicá-lo à experiência histórica recente da Venezuela, país tantas vezes mencionado na campanha presidencial brasileira pelo candidato Jair Bolsonaro.
John Rawls parte do pressuposto de que ser racional é defender seus interesses, tentar concretizar seu projeto de vida de acordo com as condições da sociedade e não ter inveja de seus pares que por acaso possam ter mais vantagens naturais ou econômicas, inveja esta que faria o mais desafortunado querer prejudicar seu vizinho, mesmo que tal prejuízo não trouxesse nenhum benefício a ele. Portanto, o ser racional tem como foco único perseguir suas metas, sem preocupar-se com sua posição relativa.
Tal premissa sobre o tipo de membro da sociedade permite a Rawls estabelecer um caminho de busca da satisfação do interesse próprio de maneira ética. O ser racional, ao ser convidado, em um momento hipotético, a participar de uma sociedade pergunta-se: que regras escolher que permitam que eu tenha condições de concretizar meus objetivos e que eu possa aderir a essas regras de maneira permanente, isto é, que regras escolher para distribuir os bens da sociedade que não sejam rígidas demais que me seja impossível obedecer a elas sempre? Ser ético, portanto, é celebrar de boa fé um contrato com outros membros da sociedade de modo que cada uma das pessoas esteja sempre pronta a colocar em prática as regras impostas a todos os que vivem no presente e os que viverão no futuro e possa nutrir expectativa razoável de que os outros farão o mesmo.
Entre as várias alternativas possíveis, há a concepção utilitária, pela qual o melhor a escolher é aquilo que proporciona o maior ganho total para a sociedade como um todo. Para o homem racional de John Rawls, essa via utilitarista é cheia de perigos. Se o ganho total é um saldo líquido que beneficiará a entidade coletiva, a análise desse saldo revelará que haverá indivíduos que serão prejudicados em prol das vantagens criadas para outros grupos. Pedir que uns se sacrifiquem para que outros floresçam requer que sejam cultivadas na psiquê de cada ser humano a empatia e a benevolência, o que não é uma certeza.
Afinal, na posição hipotética de Rawls, antes da celebração do contrato social, o indivíduo ignora as condições de que vai desfrutar na sociedade, os talentos de que ele disporá para colocar em prática seu plano de vida, a quantidade de bens materiais de que disporá quando a sociedade estiver em pleno funcionamento. E se ele tiver uma posição subalterna? Não é temerário comprometer-se de antemão com uma justiça utilitarista pela qual o foco está no ganho líquido final? O sacrifício de uns será compensado pelo benefício total obtido com a implementação das políticas utilitaristas, mas estar na posição dos sacrificados definitivamente não é reconfortante.
Daí que para o ser racional que está disposto a vincular-se a um contrato social sem saber que posição ocupará na sociedade a opção utilitarista não é a melhor. A via mais sensata é adotar o princípio da igualdade em termos de liberdades e oportunidades e o princípio da diferença, pelo qual nenhum privilégio será concedido aos mais afortunados se isso prejudicar os mais desafortunados. A aplicação simultânea desses dois princípios permite ao ser racional garantir para si um mínimo de bens sociais, independentemente de sua sorte na vida, e permite que a sociedade funcione de maneira mais cooperativa e mais eficiente, pois cada indivíduo dotado de certas liberdades e oportunidades básicas terá respeito por si próprio e não se verá como um azarado que acabou ficando na posição social errada e cujo bem-estar será sacrificado em prol do bem comum.
Em tal esquema, cada indivíduo da sociedade tem interesse em que sociedade funcione, porque tanto os mais privilegiados quanto os menos privilegiados conseguem uma fatia do bolo. Daí a justiça de Rawls, conforme explicada no trecho que abre este artigo, ser a justiça da equidade, isto é, a justiça de dar a cada um sua justa parte como resultado do esforço conjunto de cada um dos indivíduos, livres para perseguir suas metas individuais e leais ao compromisso firmado originalmente de seguir as regras impostas a todos.
Tendo explicado a diferença entre as duas visões de justiça, é útil utilizá-la para iluminar a revolução bolivariana empreendida por Hugo Chávez, cujo objetivo era erradicar a pobreza e estabelecer o socialismo do século XXI na Venezuela. Será que os preceitos do bolivarianismo se enquadram numa concepção utilitarista ou equitativa de justiça, tal como vislumbrou John Rawls?
O presidente da Venezuela de 1999 até sua morte, em 2013, tentou concretizar o objetivo revolucionário por meio de várias políticas econômicas e sociais. Nacionalizou empresas de energia, bancos e telecomunicações. Pelo Plano Bolivar 2000, tentou vacinar a população em massa e distribuir alimentos. A Missão Barrio Adentro tinha como meta proporcionar assistência de saúde integral às comunidades pobres, incluindo cuidados médicos e odontológicos e treinamento esportivo. A Missão Habitat objetivava dar moradia aos pobres. A Missão Mercal instalou mercados que forneciam alimentos e produtos básicos a preços subsidiados. A Missão Robinson era formada por voluntários que ensinavam os venezuelanos analfabetos a ler, escrever e contar.
Isso tudo era financiado com dinheiro público obtido da venda do petróleo, mas a nacionalização das empresas não fez aumentar a produção, ao contrário a diminuiu, levando o país a sofrer hiperinflação, desabastecimento e contração da economia. Em 2018 a inflação chegou a 130.000% e segundo a Anistia Internacional de 2015 a 2021 6 milhões de venezuelanos deixaram o país.
Esse breve panorama do que foi feito por Hugo Chávez enquanto esteve no comando do país parece apontar que, ao dividir a Venezuela entre a oligarquia e a maioria silenciosa, conforme o trecho que abre este artigo, Chávez quis erradicar a pobreza sacrificando a minoria privilegiada em prol da maioria destituída, praticando, portanto, uma visão utilitarista. No entanto, em assim fazendo, ele privou muitos de liberdade e de oportunidades, pois solapou as forças produtivas com suas nacionalizações forçadas.
De fato, a emigração em massa do país mostra que os grupos sacrificados em prol do ganho da maioria que elegia Chávez perderam o interesse em fazer parte de um contrato social que os estigmatizava e não lhes dava chance de prosperar e emigraram, levando consigo seus talentos, sua capacidade de criar riquezas e mergulhando o país em um círculo vicioso de estagflação e miséria. A distribuição de renda empreendida por Hugo Chávez a toque de caixa acabou sendo um tiro pela culatra, porque minou a cooperação social fundamental para que todos os indivíduos conseguissem ter sua fatia na distribuição dos bens sociais. No final, todos empobreceram sob a égide da política antagonista do nós contra eles do socialismo bolivariano.
Prezados leitores, a aplicação dos conceitos de John Rawls a uma situação concreta como a história infeliz da Venezuela nas duas primeiras décadas do século XX permite-nos ver que a justiça equitativa é a melhor justiça possível, pois é a justiça de cada um dos membros da sociedade: é a justiça para todos, dos mais ricos aos mais pobres, dos mais talentosos aos menos talentosos, dos mais privilegiados aos mais desafortunados. Ela é a única sustentável a longo prazo, porque garante um mínimo a cada um, sempre. Lembremos sempre disso quando estivermos diante de populistas cheios de boas intenções.