Em suma, caso um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado deste o início por pessoas objetivas que examinassem somente a capacidade relativa de solução de problemas, as ciências passariam por muito poucas grandes revoluções. […] O homem que adota um novo paradigma logo no início frequentemente o faz a despeito das evidências proporcionadas pela solução de problemas. Ele deve, isso sim, ter fé que o novo paradigma será bem-sucedido com os muitos problemas que o confrontam, sabendo somente que o paradigma mais antigo falhou na solução de uns poucos problemas.
Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)
Foto retirada pelo site UOL de um prédio no Rio Grande do Sul.
Prezados leitores, nas duas últimas semanas eu tenho aproveitado as lições de Thomas Kuhn sobre como a ciência se desenrola na prática para fazer uma analogia com o processo democrático. A razão de eu ter traçado tal paralelo é que, conforme expliquei no artigo “Circularidades”, o próprio autor faz uso do conceito de revolução da ciência política para explicar a revolução na prática científica: tanto na política quanto na ciência, ocorre a introdução de uma nova ordem que assenta sobre princípios totalmente diferentes dos da ordem antiga, tornando-as incompatíveis e inviabilizando que elas coexistam. Nesta semana, meu objetivo é explorar o modo como à luz da “A Estrutura das Revoluções Científicas”, a nova ordem é estabelecida, isto é, como os novos paradigmas se introduzem na comunidade científica e se impõem como consenso. Novamente, seguirei a trilha de me utilizar dos conceitos de Kuhn para iluminar o momento político pelo qual o Brasil passa.
Até que o novo paradigma atinja o status de estrutura conceitual amplamente aceita que permita aos cientistas praticarem a ciência normal, é preciso que haja um movimento de adoção por parte de cientistas normalmente mais novos e não tão adeptos dos paradigmas da ciência normal, porque desprovidos da experiência dos cientistas veteranos em fazer uso da estrutura vigente para produzir resultados. Essa falta de apego ao consenso vigente faz com que esses revolucionários estejam mais dispostos a adotar abordagens disruptivas para dar conta das anomalias que a ciência normal não consegue resolver. No entanto, essa disrupção não é uma opção clara e por isso, é cheia de perigos.
Conforme explica Kuhn no trecho que abre este artigo, o caminho da disrupção é perigoso porque não há critérios objetivos que permitam decidir de maneira unívoca em prol de um paradigma em detrimento de outro. Isso porque raramente ocorre de o novo paradigma resolver muito mais problemas do que o paradigma antigo. Ao contrário, apesar de ele ter sido pensado como uma resposta aos problemas criados pelo paradigma antigo, o novo paradigma frequentemente resolve alguns problemas e cria outros, os quais eram mais bem tratados pelo paradigma antigo e, portanto, sua utilidade não é flagrante desde o primeiro momento. Kuhn fornece o exemplo da teoria de Newton para ilustrar esse ponto: ela foi rejeitada por muitos porque colocava a gravidade como uma força de atração entre partículas de matéria sem tentar explicar a razão de tal atração, como haviam feito Aristóteles e Descartes antes dele. Newton tornava assim a gravidade um conceito metafísico: ela existia e pronto, não havia na estrutura da física Newtoniana espaço para questionamentos sobre o porquê de ela existir.
Em última análise, a adoção de um novo paradigma é uma questão de fé: o proponente da revolução crê que no longo prazo ela dará frutos em termos de solução de problemas, mesmo que no momento em que ela é proposta não haja como escolhê-la com base em sua eficiência ou o grau de aproximação da verdade que ela traz. Aliás, nenhum cientista adota um paradigma em seus estágios iniciais porque ele considera que assim a verdade estará mais próxima, afinal tal alegação, segundo Kuhn, está fora do escopo de questões científicas válidas. O que é pertinente questionar a respeito de um novo conjunto de paradigmas é se, passado algum tempo de sua adoção, ele foi capaz de ser útil, isto é, se ele foi capaz de estruturar a operação da ciência normal, aquela, que faz medições e consegue fazer previsões corretas a respeito do que ocorrerá no mundo dos fenômenos, aquela que estabelece padrões de ocorrência e melhor ainda aquela que consegue, baseando-se nos novos paradigmas, revelar fenômenos inesperados que iluminam uma nova faceta da realidade jamais prevista antes.
Daí porque podemos dizer que o percurso de um conjunto de paradigmas até ele se transformar em consenso aceito e utilizado pela comunidade científica para fazer ciência requer um movimento de coragem da parte dos que, não tendo sólidas bases para defender sua adoção, mesmo assim o fazem por acreditarem que a nova estrutura conceitual revelará suas qualidades epistemológicas no longo prazo. É neste ponto que traço o paralelo entre os paradigmas científicos e os paradigmas políticos, por meio da foto que abre este humilde artigo. Ela mostra à esquerda o paradigma do que é considerado como posições ideológicas da direita, e mostra à direita o paradigma da esquerda, tal como ela se apresenta atualmente no Brasil na visão dos que se colocam à direita no espectro político. E convida o leitor a decidir entre um paradigma e outro, entre o verde e amarelo dos patriotas e o vermelho dos comunistas, cujo símbolo tradicional são a foice e o martelo.
Será que devemos lamentar que as eleições presidenciais de 2022 tenham chegado a esse estágio de polarização? Se é para decidir, significa que a resposta à pergunta que eu coloquei na semana passada – sobre em que estágio do esquema de Kuhn estamos em nosso processo político – já tem resposta. Não temos consenso nenhum que nos permita operar na mesma estrutura conceitual. No mundo da ciência isso significa que a produção científica emperra: nada é mensurado, previsto ou descoberto. No mundo da política, isso significa que as políticas públicas emperram: não são formuladas porque não há premissas sobre as quais elas possam ser criadas. Um exemplo gritante disso é na área da educação: enquanto ainda não decidimos se queremos ou não que a escola aborde temas como multiplicidade de gêneros, diferenças entre sexo e gênero, o papel da religião na escola, o papel dos pais no conteúdo curricular, a validade do ensino em casa, não temos como unir esforços para estabelecer e implementar os melhores métodos de ensinar a ler, a entender um texto, a compreender conceitos matemáticos e a colocá-los em prática.
Já que é inquestionável que estamos em um momento de grande falta de consenso e de disputa entre paradigmas, uma nova questão se coloca: como resolveremos a disputa dos paradigmas políticos? Denunciando-os como uma mera disputa ideológica que faz nós perdermos tempo que poderia ser mais bem utilizado pelo foco na solução dos problemas práticos da população – como gerar emprego, como diminuir os juros, como melhorar os serviços públicos? Ou tornando a decisão sobre que paradigma adotar algo fundamental para que possamos passar às questões que afetam a vida cotidiana dos cidadãos? Se adotarmos a segunda opção, como introduziremos o novo paradigma: pela força da convicção dos revolucionários, tal como ocorreu ao longo da história da ciência? Ou pelo voto da maioria dos eleitores, que em outubro de 2022 terão de escolher o lado esquerdo ou o lado direito da empena do edifício gaúcho? Você decide.