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A semântica dos direitos

Posted by on 26/07/2022

O jusnaturalismo, no sentido da afirmação de uma ordem de normas para a conduta humana que transcende o arbítrio humano, à qual a validade do direito positivo está sujeita, certamente viveu um renascimento no século XX. […] A violação dessas normas causa desordem social e um movimento espontâneo por uma readequação. Mesmo um legislador supremo estava vinculado (Diguit afirmava) pela noção de estado de direito, de modo que os atos dele que o violam são nulos, mesmo independentemente de qualquer restrição constitucional. Tudo isso carrega a marca distintiva da imanência presumida nos fatos observados e uma ordem transcendente e prevalente.

Trecho retirado do verbete “Filosofia do Direito Ocidental” do volume 10 da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

Primeiramente, ao tentar entender a natureza do discurso moral e do discurso estético, alguns autores sugeriram que palavras como “bom” e “bonito” têm um significado emotivo em vez de (ou além de) um significado descritivo que outras palavras têm: ao usá-las o falante expressa aprovação ou recomendação. Se alguém diz, por exemplo, que ajudar os pobres é bom, ele não está descrevendo uma ação, mas na realidade algo como “Eu aprovo a ajuda aos pobres, faça isso também.” Tal é a função dessas palavras, de acordo com tais pensadores, e o entendimento dessa função leva ao conhecimento do sentido.

Trecho retirado do verbete “Semântica” do volume 10 da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

Em Calais, milhares de migrantes (homens, mulheres e crianças) esperam desesperadamente poder fazer a travessia rumo à Inglaterra. Eles sobrevivem em condições indignas, perseguidos pelas forças policiais, apoiados pelas únicas associações humanitárias. Uma investigação desses campos de fortuna, no coração dessas vidas estragadas, fragilizadas, despedaçadas.

Anúncio do programa de reportagem intitulado “Migrantes, vidas por um fio”, retirado do site da TV francesa TV5 e que foi ao ar em 24 de julho

    Prezados leitores, em meu humilde artigo publicado em 28 de março passado, denominado, “Obviedades ostensivas”, eu chamei atenção para o fato de que a definição ostensiva de certas palavras, isto é a definição por meio da referência a um grupo de objetos no mundo sensível, está sendo desafiada nos Estados Unidos no âmbito da disputa ideológica em torno do sexo e do gênero. A palavra que foi objeto das minhas reflexões foi “mulher”, cuja definição não é mais tão cristalina quanto costumava ser, pois para um número cada vez maior de pessoas o sexo biológico não determina o gênero do ser humano. Dessa forma, mesmo um campo da língua que costumava ser objeto de poucas polêmicas, o do significado de substantivos que nomeiam coisas visíveis a olho nu, objetos animados e inanimados, passou a ser problemático. Nesta semana, meu foco será em outro tipo de palavra na língua, aquele que nunca deixou de ser alvo de disputas pela sua própria natureza.

    Conforme o trecho sobre semântica que abre este artigo, há palavras que não descrevem algo que possa ser testemunhado ou experimentado no mundo exterior à nossa consciência, mas embutem em si um julgamento moral ou estético. Por causa disso, o significado delas não pode ser estabelecido por seu vínculo com um referente, como “mulher”, antes das batalhas ideológicas sobre a identidade de gênero, com era identificado com pessoas que tinham nascido com cromossomos sexuais XX e, portanto, eram genética e biologicamente do sexo feminino. O trecho fala do apelo emocional de palavras como bom e bonito. Quando as utilizamos, estamos pressupondo uma aprovação que surge da emoção positiva que é despertada no falante por aquilo que é objeto do julgamento de valor.

    A prova de que há um julgamento de valor ligado a uma determinada emoção experimentada pelo falante está no fato de que o significado de palavras como “bom” e “bonito” não é unívoco. Uma pessoa de esquerda pode achar bom ajudar os pobres, uma pessoa de direita pode achar que bom é ajudar as pessoas consideradas produtivas a enriquecerem. Quanto à beleza, ela é sempre uma experiência individual, intransferível e indefinível: ver algo bonito cala fundo justamente porque o motivo de algo ser belo não pode ser expresso em um argumento racional que descreva as condições da beleza, que é ou não percebida pelo falante e pronto. Se houvesse critério objetivo para definir o que é belo não teríamos pessoas que consideram a arte modernista das primeiras décadas do século XX como uma arte degenerada, como os fascistas a consideravam e outros que a enalteceram como uma erupção de criatividade ímpar que chacoalhou os fundamentos da arte ocidental, estabelecidos desde a Antiguidade clássica.

    É neste ponto que faço referência à expressão “direitos humanos”, que compartilha da mesma ambiguidade de palavras como “bom” e bonito”. “Direitos humanos” são utilizados em vários contextos e para os mais variados objetivos.  No contexto que me interessa, qual seja a reportagem mencionada na abertura deste artigo sobre os migrantes que estão em Calais, na França, para atravessarem o Canal da Mancha, quem usa “direitos humanos” é o membro de uma associação humanitária francesa que fornece comida aos migrantes e aconselhamento sobre o que fazer para conseguir chegar à Inglaterra. Ele reclama ao jornalista que no país que inventou os direitos humanos eles estão sendo desrespeitados de maneira flagrante. Estes migrantes, que há cinco anos ficavam em um acampamento improvisado a 14 quilômetros do centro de Calais, hoje não têm mais um lugar fixo. O acampamento, que chegou a abrigar 4.000 pessoas, foi desmontado pela polícia francesa, a qual impede que qualquer outro seja montado. E ela o faz confiscando os pertences de quem quer que se atreva a montar uma barraca com outras pessoas, incluindo os documentos desses migrantes, o que lhes dificulta ainda mais a vida.

    Alguns dirão que é óbvio o significado da expressão “direitos humanos” e que portanto, em Calais os direitos dos migrantes estão sendo cotidianamente desrespeitados. No entanto, a dúvida sobre o que são direitos humanos é pertinente. Para o voluntário francês, indignado com o fato de os migrantes não terem onde se hospedar, onde comer e como ir à Inglaterra de maneira segura, os direitos humanos têm a conotação jusnaturalista explicada no trecho que abre este artigo: são direitos imanentes e transcendentes, independentes da lei local e das condições sociais e econômicas. Não importa que os migrantes tenham entrado na França de forma ilegal, não importa que ocupem terrenos que não lhes pertencem, não importa que estimulem a atuação de grupos criminosos que praticam o tráfico de pessoas pagando largas somas àqueles que lhes prometem colocá-los em um bote rumo a Dover ou qualquer outra cidade na costa inglesa. Para os partidários da concepção jusnaturalista de direitos humanos, a França deve tratar os migrantes com a mesma dignidade com que trata seus cidadãos, em todos os momentos, simplesmente porque os direitos humanos são universais e se sobrepõem a qualquer norma restritiva que algum governo possa impor.

    Será que essa visão de direitos humanos prevalecerá no século XXI, como prevaleceu no século XX, século marcado pelos regimes totalitários de esquerda e de direita que mataram milhões de pessoas em nome de suas respectivas ideologias? Ou será que a guerra na Ucrânia, iniciada em 22 de fevereiro e que aparentemente está longe de acabar, provocará uma tal penúria material em termos de falta de alimentos e falta de energia que os direitos humanos na prática serão os direitos daqueles que são considerados legitimados a pedir algo porque são cidadãos do país? Quais serão os direitos humanos dos refugiados que prometem começar seu fluxo rumo a países mais prósperos quando a fome e a inflação galopante, fruto da alta no preço dos combustíveis, começarem a produzir seus efeitos? Aguardemos setembro e a chegada do outono na Europa para vermos quem será considerado “humano” titular de direitos, e quem não terá esse status.

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