A epidemia teve efeitos em todas as esferas da vida. Pelo fato de os pobres morrerem em maior proporção que os ricos, ocorreu uma falta de mão de obra; milhares de acres deixaram de ser cultivados, milhões de peixes morreram de causas naturais. Os trabalhadores desfrutaram por um tempo de um poder maior de barganha; a epidemia aumentou os salários, extinguiu muitas obrigações feudais remanescentes, e levou a revoltas que mantiveram os nobres com medo por meio século; até os padres entraram em greve por melhores salários. Os servos deixaram as fazendas para irem às cidades, a indústria expandiu-se, a classe de comerciantes obteve ainda mais vantagens em relação à aristocracia fundiária.
Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre a Peste Negra, que matou no século XIV entre 30% e 60% da população da Europa
Como a China é detentora de uma fatia de 15,4% do total das exportações comerciais globais, é natural que o país desperte a preocupação do resto do mundo. O mercado de alguns tipos de produto com alta dependência das fábricas chinesas, como chips e semicondutores, por exemplo, vive uma crise sem igual. Na semana passada, a Volkswagen do Brasil anunciou a paralisação das atividades de sua fábrica em São Bernardo do Campo por vinte dias em decorrência da falta desses dispositivos eletrônicos para instalar em seus automóveis.
Trecho retirado do artigo Caos no Mar, publicado na edição da revista VEJA de 11 de maio
Mas os economistas normalmente consideram que tal problema localizado [desaparecimento de indústrias locais e desemprego] é mais do que compensado pela disponibilidade de melhores automóveis ou toca CDs ao público consumidor. Essa conclusão se baseia em larga medida em modelos tradicionais e simples do comércio internacional. Esses modelos descrevem um mundo em que, pela troca irrestrita de bens, com todos os ganhos que ela ocasiona, cada país acaba produzindo os bens nos quais ele é naturalmente o melhor, comparativamente a outros países e produtos, e todos os países que participam do comércio beneficiam-se da troca de bens produzidos dessa maneira eficiente.
Trecho retirado do livro “O Comércio Global e os Interesses Nacionais Conflitantes” de Ralph E. Gomory e William J. Baumol
Prezados leitores, além de descrever a decrepitude moral da Igreja Católica às vésperas do Cisma do Ocidente, conforme mencionei na semana passada ao falar sobre os cardeais, em seu livro “A Reforma” Durant descreve a mudança radical das condições econômicas na Europa que ocasionaram uma grande transferência de renda das mãos da aristocracia fundiária para a burguesia.
Essa diminuição da importância da agricultura para a geração de riqueza em prol do comércio e da indústria contribuiu para solapar o poder da Igreja pelo fato de que tornou as pessoas menos propensas a tornar a religião parte do seu cotidiano, pois os moradores da cidade não mais dependiam dos caprichos do céu e da fertilidade imprevisível da terra para conseguir realizar seu trabalho. O citadino deixou de ter o temor reverencial que a natureza insondável e misteriosa despertava no camponês que arava o solo, semeava e realizava a colheita. Sua vida tornou-se mais previsível e isso teve um impacto sobre sua psiquê, livrando-o de muitos medos e também da necessidade de consolo dos infortúnios cotidianos por meio da religião.
Tal êxodo do campo para a cidade, que mudou a relação do homem com a religião católica, teve como catalisador a Peste Negra, conforme é explicado no trecho que abre este artigo. Os pobres, que passavam fome quando a safra não era boa, tinham no geral menos condições físicas de sobreviver a uma epidemia e portanto, morriam muito mais do que os proprietários de terras, que podiam se isolar em seus castelos e eram muito mais bem alimentados, pois gozavam do privilégio da caça de animais e dos frutos dela. Morrendo como moscas, os camponeses deixavam não só de cultivar a terra como deixavam de pegar a talha, a corveia e as banalidades, privando o senhor dos proventos advindos da terra, que havia sido sua única e infalível fonte de riqueza há séculos. Os camponeses que sobreviveram à peste se tornaram parte da mão de obra escassa e gozaram de maior poder de barganha, que utilizaram para conseguir melhores condições de trabalho na agricultura ou simplesmente para livrar-se do fardo de uma vez e ir para a cidade em busca de uma nova vida, menos árdua do que a vida no campo, à mercê dos fenômenos climáticos.
Em suma, o que era um mundo bucólico para os aristocratas rentistas e infernal para os que faziam o serviço agrícola transformou-se radicalmente com a Peste Negra, fazendo surgir um novo estado de coisas, em que novos modos de criação de riquezas tornaram quem era rico e poderoso incapaz de explorar o trabalho alheio, pois este passou a ser explorado pelos empreendedores nas cidades, responsáveis pela organização das primeiras indústrias, juntando trabalhadores com diferentes especialidades em um único lugar. É inevitável neste ponto traçar um paralelo com a situação que vivemos hoje depois da epidemia de COVID-19, que até hoje matou um pouco mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo, o que é risível, em face dos 75 milhões de indivíduos, no mínimo, que pereceram por causa da Peste Negra. Embora não tenhamos tido uma peste na acepção histórica do termo, a pandemia do século XXI promete ser um divisor de águas em termos econômicos como ocorreu no século XIV na Europa.
A notícia objeto do artigo publicado na VEJA ilustra esse efeito disruptivo. O governo de Xi Jinping decretou um lockdown draconiano em 27 cidades chineses para combater um recrudescimento dos casos de COVID. Entre as cidades afetadas, encontram-se metrópoles costeiras, como Shenzen, Guangzhou e Xangai, cujo porto, o maior do mundo, movimenta anualmente 43 milhões de contêineres. O confinamento causou uma redução drástica nas atividades de embarque e desembarque, resultando em filas enormes de navios à espera de autorização para atracar. Considerando que, segundo dados da Divisão de Estatísticas das Nações Unidas, a China responde por 28,7% da produção manufatureira no mundo, a falta de movimentação de mercadorias no porto de Xangai afeta as cadeias de suprimento globais e causa efeitos perversos nos países que dependem dos produtos chineses, como é o caso do Brasil, conforme explicado no trecho que abre este humilde artigo.
Várias perguntas surgem a respeito do que está ocorrendo na China. Será que o lockdown era mesmo necessário? Ou será que o governo chinês está usando a epidemia de COVID-19 como uma desculpa para usar o poder proporcionado ao país, por ser a fábrica do mundo, para afetar a produção e o comércio de países com os quais a China tem disputas? Será que tais disrupções logísticas levarão o mundo a abandonar os dogmas sobre o comércio internacional que prevaleceram durante toda a segunda metade do século XX, conforme explicados no trecho que abre este artigo? Será que a visão benevolente das trocas globais como a melhor maneira de criar eficiência e gerar riqueza para todos pela divisão internacional do trabalho de acordo com as vantagens competitivas naturais de cada país será suplantada pela visão de que o comércio internacional cria dependências perigosas de países que podem usar sua posição predominante como moeda de troca ou de chantagem? Será que a eficiência da China em produzir bens industriais a preços baixos continuará a ser vista como uma fonte de prosperidade para todos ou passará a ser vista como uma ameaça à soberania das nações?
Prezados leitores, ainda é muito cedo para estabelecermos com certeza se haverá uma mudança de paradigmas econômicos, sociais e culturais causada pela pandemia do século XXI como a Peste Negra causou no século XIV. Pode ser que daqui a alguns anos a globalização volte a funcionar perfeitamente: os navios transportando as mercadorias singrem os mares de um país para o outro, regularmente e sem atropelos, para a prosperidade geral de todos. Ou pode ser que surja uma outra cortina de ferro, como aquela que dividiu o Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, e essa nova cortina separe os países alinhados a cada uma das superpotências mundiais, que são a China e os Estados Unidos, ao menos por enquanto. Aguardemos os desdobramentos. A Peste Negra engendrou o capitalismo e a decadência da Igreja Católica. O que fará a epidemia da COVID?