Os antigos que desejavam exemplificar a maior virtude em todo o império primeiro colocavam seu próprio estado em ordem. Desejando colocar seu estado em ordem, eles regulavam primeiro as famílias. Desejando regular as famílias, eles primeiro cultivavam seu próprio ser. Desejando cultivar seu próprio ser, eles arrumavam primeiro seu coração. Desejando arrumar seu coração, eles procuravam primeiro ser sinceros nos seus pensamentos. Desejando ser sinceros em seus pensamentos, eles aumentavam ao máximo seu conhecimento. Tal expansão do conhecimento baseava-se na investigação das coisas.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) citando trecho da obra “O Grande Aprendizado” sobre Confúcio, filósofo chinês (551-479 a.C.)
Em 2018, algumas restrições foram impostas aos cidadãos […]. Em novembro de 2019, além do comportamento financeiro desonesto e fraudulento, outro comportamento que algumas cidades listaram oficialmente como fatores negativos de classificações de crédito incluem tocar música alta ou comer em metrôs/trens, violar as regras de trânsito, como atravessar fora da faixa de pedestres e violar o sinal vermelho, fazer reservas em restaurantes ou hotéis mas não comparecer, deixar de separar corretamente os resíduos pessoais, usar de forma fraudulenta carteiras de identidade de outras pessoas em transporte público, fumar, etc. Por outro lado, os comportamentos listados como fatores positivos de classificações de crédito incluem doar sangue, doar para instituições de caridade, trabalho voluntário para serviços comunitários, elogiar os esforços do governo nas redes sociais e assim por diante.
Trecho retirado do verbete da Wikipedia sobre o sistema de crédito social, implantado pelo governo da China em 2014
Prezados leitores, na semana passada utilizei este meu humilde espaço para apresentar a proposta de não violência de Mahatma Gandhi (1869-1948), que enfrentando o governo colonial inglês apenas com a força de suas sábias palavras contribuiu para que a Índia conquistasse sua independência. A guerra em curso atualmente no Leste Europeu, depois da invasão da Ucrânia pelas tropas de Vladimir Putin, parece representar um choque de civilizações entre o Ocidente democrático, liderado pelos Estados Unidos, e os regimes vigentes na Rússia e na China, que em 4 de fevereiro deste ano declararam ter firmado uma parceria ilimitada. Pode ser útil examinar o que mais os orientais tem a oferecer em termos de organização social e política, porque a depender dos resultados e das consequências do conflito atual, poderemos ter que lidar com uma nova ordem mundial.
Para tanto, concentrarei meus esforços no resgate do pensamento de Confúcio, tal como explicado no livro de Will Durant citado na abertura deste artigo e tentarei estabelecer uma repercussão desse pensamento na China do século XXI, portanto 2500 anos após o filósofo autor dos Anacletos ter vivido. Conforme mostra o trecho retirado de “Our Oriental Heritage”, a paz e a prosperidade são construídas de baixo para cima, quando o indivíduo disciplina a si mesmo, e não pela imposição de leis de cima para baixo. Esse processo de cultivo da virtude começa pela busca do conhecimento do mundo e do indivíduo ele mesmo. Conhecendo-se, o homem saberá determinar seus pontos fortes e seus pontos fracos, quais são suas paixões, sua natureza. De posse desse conhecimento, ele não mentirá para si mesmo, pretendendo ser algo que não é e tendo pensamentos falsos, ao contrário sua sinceridade colocará o foco da sua reflexão na melhora da sua personalidade, para livrar-se de seus defeitos. Em assim fazendo, o homem conseguirá retificar seu comportamento, reprimindo aquilo que é prejudicial e incentivando aquilo que é benéfico. Atuando com retidão moral, ele conseguirá servir de exemplo a seus familiares e manterá bom relacionamento com eles, garantindo que sua família funcione bem. Funcionando bem, a família disciplinada torna-se o sustentáculo da ordem social, pois cada um dos membros da comunidade agirá no mundo com inteligência, coragem e boa vontade, senhor de si mesmo, dos seus impulsos, das suas propensões, de modo que as interações sociais são proveitosas para todos os envolvidos, sem que nenhum tire vantagem do outro. Havendo relações sociais amistosas e fundadas na boa fé, a ordem é criada espontaneamente e o governo naturalmente funciona porque seus objetivos são respaldados pelo comportamento correto da população.
Ao fazer um balanço da influência de Confúcio sobre a sociedade chinesa, Durant reconhece que sua ênfase no aprendizado e na sabedoria permitiu ao Império do Meio desenvolver uma vida comunitária harmoniosa que foi seu sustentáculo espiritual ao longo de séculos de tumultos causados pelas invasões dos “bárbaros”. Por outro lado, a ênfase no comportamento correto, socialmente responsável, na construção cotidiana da virtude, no controle dos impulsos, reprimiu a natureza humana na China, tirando-lhe o vigor, a naturalidade, a energia criativa das paixões e sufocando a busca do prazer e da aventura. Em assim fazendo a aplicação prática da filosofia de Confúcio tornou a sociedade chinesa conservadora e estéril ao extremo, em que pese ter conseguido a paz e a perfeição da harmonia social.
À luz dessa explicação sobre o pensamento do filósofo mais influente da China, o sistema de crédito social instituído pelo governo chinês, exercido pelo Partido Comunista capitaneando por Xi Jiaoping, tem nítidas raízes confucianas. Fazendo uso dos algoritmos proporcionados pela inteligência artificial, o governo elaborou um sistema de pontuação que atribui pesos diferentes a determinados comportamentos individuais, a depender do que é considerado socialmente benéfico e maléfico, tal como descrito no trecho que abre este artigo. De acordo com as ponderações adotadas e os pontos acumulados pelo indivíduo em suas interações sociais, ele terá um saldo positivo e obterá recompensas, ou terá um saldo negativo e será punido.
Os críticos de Confúcio em seu tempo consideravam que fazer com que o bom andamento da sociedade, do governo e do estado dependa do comportamento virtuoso de cada indivíduo era muito arriscado e o melhor seria impor leis que coagissem as pessoas a obedecer. Parece que os comunistas atualmente no poder na China preferiram apostar na receita milenar de autocontrole pelo indivíduo com a ajuda da mais avançada tecnologia: é a algocracia, a governança pelo algoritmo, que torna o poder do governo menos escancarado e mais sutil, prescindindo de leis, decretos, garantindo que a ordem social surja naturalmente da disciplina que cada indivíduo impõe a si mesmo.
Será este nosso futuro, tornarmo-nos súditos da algocracia confuciana? Será que as sociedades ocidentais sacrificarão sua liberdade em prol da paz social proporcionada pelos algoritmos do sistema de crédito chinês? Ou será que o impulso individual nunca será domado no Ocidente como o é no Oriente? Aguardemos o raiar dessa possível nova ordem mundial, em que os países da Ásia formarão o novo eixo de poder.