Fernández disse a Putin: “Estou empenhado em que a Argentina deixe de ter essa dependência tão grande que tem com o Fundo (Monetário Internacional) e com os Estados Unidos. Tem de se abrir caminho a outros lados e me parece que a Rússia tem um lugar muito importante.
Trecho retirado do artigo “Apoio da esquerda e da direita a Putin” do jornalista Lourival Sant’Anna publicado no jornal O Estado de São Paulo de 6 de fevereiro
Putin, um verdadeiro patriota? Presidente russo se acostumou a colocar o mundo de joelhos com suas ameaças
Título e subtítulo do artigo de Mario Vargas Llosa publicado no jornal O Estado de São Paulo de 6 de fevereiro
[…] uma organização racional pré-científica da experiência sensorial em um mundo coerente, inteligível de objetos substantivos vistos como interagindo por meio de processos causais
Trecho retirado do verbete “Filosofia da Ciência” na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica sobre o filósofo Immanuel Kant (1724-1804)
Prezados leitores, na semana passada fiz uso dos conceitos elaborados por Ludwig Wittgenstein a respeito da linguagem para elucidar o porquê de eu considerar Curitiba democrática e o porquê de uma amiga com quem troquei mensagens considerar a cidade fascista com base nas qualidades de limpeza, ordem e beleza que lá percebi. O caminho que encontrei foi esclarecer o uso diferente que estávamos cada uma de nós fazendo do adjetivo democrático. Não poderíamos chegar a um acordo sobre as qualidades ou defeitos da capital do Paraná antes de estabelecermos uma regra sobre como utilizar o termo “democrático” na prática. Nesta semana, irei humildemente valer-me de outro filósofo para abordar o assunto que está na pauta do dia da agenda internacional: Putin tem ou não razão em colocar tropas na fronteira da Rússia com a Ucrânia? Não pretendo apresentar uma resposta a tal pergunta, mas apenas tentar explorar a origem das diferentes respostas dadas.
Minha exploração da polêmica toma como base os ensinamentos de Immanuel Kant, que em sua obra filosófica tentou uma terceira via que não era nem o racionalismo de René Descartes (1596-1650), para quem o conhecimento é obtido das ideias inatas, nem o empiricismo de David Hume (1711-1776), para quem o conhecimento é obtido exclusivamente dos sentidos e da experiência. O meio termo entre esses dois polos consistiu em postular que a experiência é necessária, mas não suficiente para o conhecimento. O que transforma a matéria bruta da experiência em conhecimento são os princípios de organização, entre os quais o da causalidade, que são categorias mentais com as quais o homem dá forma e interpreta a experiência: o homem, enquanto ser racional, impõe à Natureza uma estrutura cognitiva, a qual não é algo pronto para ser descoberto no mundo exterior e trazido à luz.
Daí que conforme o trecho que abre este artigo, um mundo coerente e inteligível, regido por relações de causa e efeito, é produto de uma organização racional da experiência, que permite que a realidade perceptível nos dê respostas, que obriga a Natureza a responder às perguntas que do contrário permaneceriam não respondidas se o homem se valesse apenas do fluxo de impressões sensoriais. É neste ponto que insiro a questão sobre os motivos louváveis ou não de Putin mobilizar tropas na fronteira com o país vizinho. Como decidir se os motivos do líder russo são louváveis ou não? Basta nos inteirarmos dos fatos e conseguiremos chegar a uma conclusão unívoca? Os ensinamentos de Kant mostram que entre o que acontece no mundo visível e nossa mente há pontes que construímos de acordo com nossas categorias mentais: a depender do material e da técnica de construção utilizados teremos diferentes estruturas.
Para Mario Vargas Llosa e Lourival Sant’Anna, cujos artigos são citados acima, Vladimir Putin é a antítese da liberdade. Encastelado há 22 anos no poder e sem a mínima vontade de aposentar-se e dar lugar a outros (tendo inclusive conseguido aprovar uma lei que lhe permite continuar na ativa atpe 2036), Putin representa o autocrata autoritário que quer impor sua vontade de qualquer jeito, ameaçando cortar o suprimento de gás aos países da Europa, como informa Mario Vargas Llosa e colocando tropas na fronteira com a Ucrânia para amedrontar o Ocidente democrático e fazê-lo aceitar a incorporação do país pelo gigante russo. Além disso, Putin é machista, homofóbico e racista, o que o coloca em posição diametralmente oposta àquela dos países avançados nos quais a tolerância à diversidade racial e sexual é um apanágio das liberdades proporcionadas pelo regime democrático.
Há no entanto, uma outra visão centrada em torno de uma outra qualidade, diferente da liberdade, qual seja, a alternativa de poder, expressa pelo presidente da Argentina, Alberto Fernández, conforme mostrado na abertura deste artigo: nosso vizinho sul-americano é o maior devedor do FMI, com quem já celebrou mais de 20 acordos, (a dívida chegava a 44 bilhões de dólares em 2019) e naquele ano, de acordo com os dados do CIA Factbook, teve uma retração do PIB de 2,03%. Para um país como a Argentina, que está preso em um círculo vicioso de dívidas impagáveis e recessão econômica, uma alimentando a outra, o modelo ocidental não tem rendido frutos, a despeito das liberdades que Mario Vargas Llosa tanto preza. Buscar outros apoios na cena internacional que ofereçam ajuda financeira menos onerosa que aquela oferecida pelo FMI, cujo maior acionista são os Estados Unidos, talvez fosse um caminho para a Argentina, na visão de Fernández. Nesse sentido, Putin, ao desafiar os desejos dos Estados Unidos, representa uma alternativa ao liberalismo econômico proposto pelos americanos, que entre outras condições fundamentais para que ocorra a livre e proveitosa atividade econômica, estabelece que os contratos devem ser respeitados e que as dívidas devem ser pagas sempre. Para um grande devedor como a Argentina, livrar-se dessas constrições liberais pode ser um bom negócio.
Assim, a utilização de diferentes categorias mentais para enquadrar os acontecimentos da geopolítica mundial nos leva a construir mundos completamente diferentes. A colocação pela Rússia de tropas na fronteira com a Ucrânia pode ser vista como um ato de soberania e de resistência a reconhecer os Estados Unidos como o país que dita as regras e os valores para todo o mundo ou como um ato belicoso de opressão de um país vizinho que é muito menor e que está lutando para seguir seu próprio caminho na cena mundial, livre da influência histórica do seu vizinho mais poderoso e sempre assertivo.
Prezados leitores, o que hoje chamam de narrativas, para denotar visões dos fatos determinadas por uma determinada ideologia, o velho filósofo de Konigsberg considerava tratar-se de um sistema racional de explicações empiricamente aplicáveis. A diferença entre um e outro é que Kant acreditava que tal estrutura era eficaz e a única possível para obter o conhecimento, ao contrário dos proponentes das narrativas de hoje, que consideram que se trata sempre de uma luta pelo poder e não pela verdade. Espero que, se não me atrevo a dar uma resposta positiva ou negativa sobre os atos de Vladimir Putin, ao menos eu tenha conseguido explicar as origens dos diferentes fatos e narrativas sobre o personagem.