A religião respalda a moralidade de duas maneiras principais: o mito e o tabu. O mito cria a crença sobrenatural por meio da qual as sanções celestiais podem ser dadas a formas de conduta social (ou sacerdotalmente) desejáveis; as esperanças e terrores celestiais inspiram o indivíduo a tolerar restrições que lhe são impostas por seu senhor ou pelo grupo. O homem não é naturalmente obediente, gentil ou casto; e ao lado daquela antiga compulsão que finalmente gera a consciência, nada conduz de maneira tão tranquila e contínua a essas virtudes destoantes como o medo dos deuses. As instituições da propriedade e do casamento em larga medida se apoiam nas sanções religiosas, tendendo a perder o vigor em épocas em que impera a descrença.
Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, que acaba de ser lançado no Brasil, o renomado neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, aponta as baterias de combate ao estado atual de estagnação intelectual para o que afirma ser sua maior causa: o excesso de tempo passado diante da tela dos mais variados aparelhos digitais. […] Estudo da Universidade de Alberta, no Canadá, mostrou que crianças de 5 anos ou menos que passam mais de duas horas por dia on-line têm chance cinco vezes maior de apresentar dificuldade de concentração e sete vezes mais risco de exibir sintomas de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Trecho retirado do artigo “Mentes nem tão brilhantes” publicado na edição da revista Veja de 6 de outubro
Em diferentes medidas, todos eles acreditavam que o homem era, por natureza, racional e sociável: ou que, pelo menos, sabia o que melhor lhe convinha – bem como aos outros – quando não eram desvirtuados por velhacos ou mal conduzidos por tolos; acreditavam também que, se ao menos o homem aprendesse a descobrir seus interesses, ele seguiria as regras de conduta passíveis de descoberta mediante o emprego do entendimento humano corriqueiro; […] Eles acreditavam que a descoberta e o conhecimento de tais leis tenderiam, desde que fossem suficientemente difundidos, por si mesmos a promover uma harmonia estável tanto entre os indivíduos e as associações quanto no interior do próprio indivíduo.
Trecho retirado do livro “Os limites da utopia” do pensador nascido na Letônia e naturalizado britânico Isaiah Berlin (1909-1997) sobre os filósofos do Iluminismo
A única solução para o problema das drogas é a coragem que o Uruguai teve: liberalizar o comércio das drogas […] Esta foi a solução que propôs, há muitos anos, um economista liberal, Milton Friedman, que, ademais, acrescentou que seguia crescendo a luta contra as drogas, e aqueles que viviam desse trabalho seriam os piores inimigos de sua liberação. Exatamente assim ocorreu.
Trecho retirado do artigo “Liberdade para as drogas”, escrito pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa e publicado no Estadão de 7 de novembro
Prezados leitores, na semana passada eu descrevi as descobertas do antropólogo francês Pierre de Clastres sobre a organização política de certas tribos indígenas brasileiras, que prescindiram da organização de um Estado nos moldes encontrados nas sociedades ocidentais, para ilustrar a argumentação desenvolvida por Will Durant em seu livro “Our Oriental Heritage”: cada cultura humana tem sua lógica, sua maneira de estruturar-se e de estruturar o mundo à sua volta. A lição que ele tira é que se o que é bom e o que é mal do ponto de vista da moral é relativo a cada grupo humano que se organizou autonomamente ao longo da história do Homo Sapiens na Terra, isso não deve necessariamente levar-nos a um desencanto com todo e qualquer código de ética pelo fato de seus preceitos não terem um valor absoluto. Ao contrário, essa relatividade é um indício da capacidade dos homens de responderem aos desafios colocados pelo seu ambiente e de acumular uma experiência que lhes permite pela tentativa e erro achar as melhores regras para a convivência social naquele local e para aquelas pessoas que formam o grupo.
Nesta semana, abordarei um outro aspecto da visão que Durant tem da moral, além da sua utilidade para a organização da sociedade. Fica claro pela leitura do trecho que abre este humilde artigo que para aquele filósofo americano a religião é um pilar indispensável da moral. Não há como fazer os homens comportarem-se de acordo com as regras do bem viver se não lhes for instilado o medo da punição e a esperanças das recompensas que só os mitos religiosos proporcionam. Quando a crença na religião começa a vacilar a disposição dos homens de obedecer também segue o mesmo caminho. Durant ilustra esse ciclo inevitável em seu livro “The Life of Greece”, ao explicar como a ascensão da descrença permitida pelo florescimento da filosofia levou os gregos, independentemente de sua maior ou menor capacidade intelectual, a utilizar argumentos filosóficos relativistas para justificar sua negação das restrições desagradáveis impostas pela moral fundada na religião. Em suma, a fina camada civilizatória que o homem é capaz de criar se sustenta sobre as sólidas fundações do medo irracional do castigo dos deuses ou do fogo do inferno, a depender de qual religião está em voga.
Sob essa perspectiva, Durant é um cético em relação aos preceitos dos filósofos iluministas do século XVIII, homens como Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755). Conforme o trecho reproduzido acima, extraído do livro de Isaiah Berlin, o Iluminismo, trouxe a concepção de que o homem tinha uma vocação natural para a razão: se ele fosse exposto às informações necessárias e não fossem manipulado por pessoas mau intencionadas ou imbecis que tivessem o poder de lhe impor suas mentiras ou superstições, o homem se utilizaria de suas faculdades mentais e de suas percepções sensoriais para encontrar por si mesmo as regras do bem viver, isto é, a melhor maneira de comportar-se em relação aos seus semelhantes e ao mesmo tempo de atender seus próprios interesses, de forma a criar uma harmonia social em que os membros do grupo se entenderiam porque seriam capazes de perceber qual era o denominador comum que criaria o máximo de prosperidade e bem-estar para o maior número de pessoas. Em suma, a religião, longe de ser o pilar da moral, era um obstáculo a ela, por causa dos preconceitos imemoriais que ela embutia e que prejudicavam a visão imparcial dos fatos. A tradição, representada por regras reproduzidas sem questionamento através dos séculos, é estúpida e obscurantista, porque ela impede o homem de ser livre e de escolher o seu caminho de acordo com seu melhor julgamento.
Quem tem razão neste debate? Durant ou Voltaire? Conservadores ou liberais? É um debate que está implícito na discussão sobre a liberalização ou não das drogas. No artigo citado acima, o escritor peruano Mario Vargas Llosa mostra-se claramente um iluminista. Em sua opinião, o comércio das drogas deve ser livre porque a política de repressão até agora adotada só levou à consolidação do poder dos narcotraficantes, à violência e à corrupção das instituições estatais. A solução é jogar luzes sobre esse poço sem fundo: deixemos que as pessoas tenham a liberdade de optar por se drogar ou não, com base em um consentimento informado, isto é, na análise por cada um de nós, sujeitos do nosso destino, dos riscos e benefícios de ingerir substâncias que causam alterações no cérebro e que têm potencial de causar vício.
Para Llosa, pior que está não pode ficar: os narcotraficantes se beneficiam da repressão auferindo lucros fabulosos e oferecendo seus produtos livremente, a despeito de todo o aparato policial. Sua mensagem é de um perfeito filósofo iluminista: façamos uma análise desapaixonada dos fatos, livremo-nos das nossas ideais pré-concebidas, fundadas no medo e na ignorância sobre as drogas, e tenhamos a coragem de confiar na capacidade de cada ser humano, dotado da capacidade de pensar e perceber, de decidir o que é melhor para si. A droga não é pecaminosa ou demoníaca em si, ela pode ser deletéria se for mal utilizada por pessoas desinformadas.
Não há dúvida de que nem todo usuário de drogas é um viciado incorrigível e não há dúvida sobre a influência corruptora exercida pelos narcotraficantes sobre as frágeis democracias na nossa América Latina. No entanto, será que nós realmente somos capazes de nos proteger de escolhas erradas simplesmente pela exposição ao maior número de informações sobre as vantagens e desvantagens de determinado comportamento?
De fato, o artigo de Veja sobre os efeitos deletérios do uso exagerado de aparelhos digitais é mais um dos tantos que nos alertam sobre os perigos da nossa fissura pela tela dos celulares, tablets e quejandos. Quem já não leu sobre o impacto das fake news sobre as campanhas eleitorais, o impacto dos algoritmos utilizados pelas mídias sociais sobre nossas preferências ideológicas, reforçando-as e nos fazendo fecharmo-nos cada vez mais na nossa tribo? E no entanto, apesar de todas essas informações, de todas essas advertências de especialistas como o Sr. Desmurget sobre o impacto do excesso de tempo na frente das telas, continuamos aqui e não desgrudamos delas. Qual será a razão? Será que o nosso prazer em navegar na internet, no Facebook e no WhatsApp é maior do que nossa tênue consciência acerca dos males do vício? Será que no final das contas só conseguimos controlar nossas emoções e impulsos quando eles são suaves o suficiente para não importunar o funcionamento da razão? Será que quando somos deixados livres para decidir, isso não é necessariamente garantia de que decidiremos o que é melhor para nós porque nossa irracionalidade, livre das amarras da religião e da moral vem à tona?
Prezados leitores, viciada que sou como vocês nas telas digitais, ainda que não nas drogas, eu não tenho resposta ao dilema reprimir ou não reprimir, liberar ou não liberar, emoção ou razão. Espero ao menos ter contribuído para que cada um possa perceber a complexidade da questão inquirindo sobre as origens históricas e filosóficas da dialética entre moral e religião.