Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. […] Prudencio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia; algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” ao que, eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; esse às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
Trecho retirado do capítulo “O menino é pai do homem” do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis (1839-1908)
Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vitor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.
Trecho retirado do artigo “O labirinto do general: da humilhação a um soldado a ’réu’ na CPI publicado no jornal o Estado de São Paulo em 30 de maio de 2021
Prezados leitores, nunca esqueço das palavras de Gore Vidal em um dos ensaios publicados no Brasil sob o título “De fato e de ficção”, já citado aqui neste meu humilde espaço, de que a literatura, quando bem feita, é um exercício de imaginação dos mais verdadeiros. Nada como uma história bem contada para iluminar a realidade e revelá-la em toda sua beleza ou torpeza, dando-lhe um sentido que, se ficássemos muito colados aos detalhes do cotidiano, não perceberíamos. Daí por que a literatura que se pretende ser algo além do entretenimento é uma poderosa arma de reflexão. O trecho que abre este artigo ilustra esse poder da literatura de recriar a realidade e torná-la inteligível para nós.
No caso do livro de Machado de Assis as travessuras fictícias de Brás Cubas, um menino bem nascido no Rio de Janeiro do século XIX, mostram a insensibilidade de quem cresceu em um meio no qual os escravos negros eram tratados como objetos com os quais podia-se fazer o que quiser. Pior, tudo o que ele fazia de cruel, de desumano, de irresponsável era aplaudido pelo pai como manifestação de energia e de robustez, em suma de um espírito que nascera para mandar, para dar ordens do alto do cavalo real ou fictício aos negros que deveriam obedecer sempre, por mais que as ordens fossem absurdas. Prudencio comportava-se como um cavalo apesar de ser um ser humano porque assim queria Brás Cubas, que exercia assim sua autoridade e reforçava seu papel de senhor, com o beneplácito do pai, que via neste mandonismo, neste capricho de um menino mimado e mal acostumado, sinal de liderança.
Este famoso trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas ilustra o comportamento dos nossos nhonhôs de duzentos anos atrás e infelizmente continua a revelar traços que persistem, como mostra este episódio da carreira militar do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde de Jair Bolsonaro. Na época em que ele mandou o soldado negro puxar a carroça, em 2005, Pazuello era tenente-coronel e sua conduta foi submetida a um Inquérito Policial Militar que não levou a nenhuma punição porque a defesa conseguiu fazer valer sua versão de que o objetivo do comandante do quartel não era impor maus-tratos ao recruta, e sua atitude derivou do seu amor especial pelos cavalos. Um cavalo de tração como aquele deveria gozar sempre de boa saúde, e para isso deveria ser bem tratado e não ordenado a puxar mais peso do que poderia aguentar (no caso havia uma banheira na carroça).
E assim, nosso querido general sempre estabeleceu suas prioridades valendo-se dos seus privilégios, tal como nosso querido Brás Cubas, que dedicava-se a exercícios equestres para treinar suas qualidades morais: humilhar um recruta para mostrar-lhe a necessidade de cuidar bem dos animais foi possível a Eduardo Pazuello porque ele tinha posição de mando àquela época e ficou impune porque aqueles que o julgaram comportaram-se como o pai do herói machadiano: assim como enforcar, chicotear Prudêncio era uma mera traquinagem, que preparava o futuro líder político Brás Cubas para seu grande destino de mandar nas classes subalternas, fazer Carlos Vítor de Souza Chagas puxar uma carroça reforçou a autoridade de Pazuello, tanto que todos no quartel riram às custas do soldado de 19 anos e depois de sua experiência de comandante daquele quartel o futuro Ministro da Saúde comandou o 20º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista.
A última façanha de Pazuello foi ter participado de uma carreata de motociclistas ou “motociata”, ao lado de Bolsonaro no Aterro do Flamengo no dia 23 de maio. Como ele ainda é general da ativa, pode ser submetido a punição por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe militares da ativa de comparecerem a atos políticos. O que fará o Comando do Exército? Bolsonaro, que chamou Pazuello carinhosamente de “gordinho” durante a manifestação no Rio de Janeiro, já pediu publicamente que ele não seja punido. Será que o Comando do Exército fará como o pai de Brás Cubas? Aplicará uma punição proforma para seguir as formalidades da lei, mas nos bastidores irá passar-lhe a mão na cabeça com condescendência e admiração? Será que a direção das nossas Forças Armadas quer os militares participando da política como uma forma de evitar os “excessos” da democracia? Será que na realidade consideram o ativismo político de certos militares como algo bom para manter a lei e a ordem? O mais provável é que cheguem a uma solução de consenso e obriguem Pazuello a ir para a reserva e pronto, sem grandes punições. Um tapinha nas mãos do voluntarioso general de divisão da ativa, talvez: afinal muitos dirão que o evento era dos motociclistas que convidaram Jair Bolsonaro e seus amigos a participarem e não um evento da campanha de reeleição de Bolsonaro. Há sempre uma explicação desde que haja boa vontade com pessoas que devem ser dignas de admiração pelo “espírito robusto”.
Prezados leitores, convenceram-se de que a ficção da literatura às vezes é tão criativa e verdadeira que ela se faz presente na realidade? Entre Brás Cubas e Eduardo Pazuello, entre Prudencio e Carlos Vitor de Souza Chagas passaram-se dezenas e dezenas de anos, mudou-se o regime político de monarquia para república e no entanto, continuamos a tratar seres humanos como bestas de carga. O bruxo do Cosme Velho continua, como sempre foi, desde que escreveu suas principais obras, presciente das torpezas deste Brasil cuja herança escravista continua ainda presente nos pequenos detalhes do cotidiano.