A “tirania” de Pisístrato foi parte de um movimento geral nas cidades comercialmente ativas do século VI a.C. na Grécia de substituir o regime feudal da aristocracia proprietária das terras por uma dominação política pela classe média em uma aliança temporária com os pobres. Tais ditaduras tiveram sua origem na concentração patológica da riqueza e na incapacidade dos ricos de chegar a fazer um compromisso. Obrigados a escolher, os pobres, como os ricos amam mais o dinheiro do que a liberdade política; e a única liberdade política capaz de perdurar é aquela tão podada que impede os ricos de arrancar o couro dos pobres pela capacidade ou sutileza e os pobres de roubar os ricos pela violência ou pelos votos. […] Chegando ao poder, o ditador aboliu as dívidas ou confiscou grandes propriedades, taxou os ricos para financiar obras públicas ou redistribuiu a riqueza superconcentrada; e ao mesmo tempo que ganhava o apoio das massas por meio de tais medidas, assegurava o apoio da classe empresarial promovendo o comércio com a fabricação estatal de moedas e os tratados comerciais, e aumentando o prestígio social da burguesia.
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
Temos dificuldades graves no uso do dinheiro público. Não é apenas uma questão fiscal, mas de natureza política, ligada à incapacidade de arbitrar prioridades. Nossos representantes precisam dar mais ênfase aos grandes objetivos sociais, que representem avanços para a maioria das pessoas.
Trecho de entrevista de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, à revista VEJA de 26 de maio de 2021
Prezados leitores, na semana passada eu mencionei a cidade de Esparta na Grécia antiga e seu sistema peculiar em que uma casta dominava a maioria trabalhadora pela sua total dedicação às artes militares. Continuando sua descrição da história das várias cidades gregas para contextualizar sua produção cultural e artística, Will Durant, no livro mencionado acima, explica-nos os problemas enfrentados ao final do século VII a.C. pela Ática, a região da Grécia onde fica Atenas. Abordar tais problemas de mais de dois mil anos permite-nos ver como os desafios dos vários sistemas econômicos e políticos surgidos ao longo da história apresentam certas características comuns.
A situação dos camponeses da Ática tornou-se particularmente dramática em um determinado momento. Eles foram passando mais e mais para uma situação de destituição completa por dois fatores: a divisão das suas terras entre os descendentes tornava as propriedades cada vez menores e menos produtivas e o incremento do comércio pela fundação de colônias em todo o Mediterrâneo estimulou a importação de alimentos a preços com os quais os camponeses não conseguiam competir.
O resultado era que os camponeses se tornavam endividados pela necessidade de hipotecar as terras e não conseguindo pagar as dívidas eram obrigados a trabalhar para os credores como servos. Nas cidades, os intercâmbios internacionais tornavam os escravos muito mais facilmente disponíveis e a classe média dispensava o uso dos trabalhadores livres que antes lhes prestavam serviços, levando tais trabalhadores a não ter emprego e a passar fome.
Durant resume bem a situação descrevendo a dialética que está presente em toda a sociedade, aquela entre a liberdade e a igualdade. Com a liberdade pôde haver o aumento do comércio com as colônias gregas do Mediterrâneo, a troca de produtos, a produção de riquezas pela ampliação dos mercados. Por outro lado, isso causou devastação em certos grupos sociais, que perderam com esse dinamismo porque eram incapazes de fazer frente à nova situação e adaptarem-se.
E assim acontece sempre: a ênfase na liberdade para que o talento e o mérito floresçam cria a oportunidade de inovação e de eficiência; ao mesmo tempo, cria-se um grupo de vencedores que transmitem sua riqueza aos descendentes e que com seu dinheiro passam a ter influência sobre como as leis são elaboradas e interpretadas. Na Ática do final do século VII a.C. o camponês, incapaz de competir com os produtos importados, acabava eternamente preso às obrigações com os credores pela execução estrita das leis sobre execução de dívidas. Dessa forma, a igualdade sai prejudicada, e a casta dos que prosperam pela habilidade de enfrentar o desafio das novas situações usa seu poder para aumentá-lo ainda mais moldando as leis aos seus próprios interesses.
Cria-se assim um círculo virtuoso para os que estão em cima e um círculo vicioso para os que estão em baixo. O poder econômico cria poder político que reforça o poder econômico e a falta de poder econômico leva à perda de poder político que reforça a destituição material. Em última análise, chega-se ao estágio que Durant descreve como concentração patológica da riqueza, conforme o trecho que abre este artigo. Patológica porque o foco absoluto na liberdade em detrimento da igualdade torna os pobres tão destituídos e desesperados que eles não têm mais nada a perder e portanto, não tem mais nenhum interesse na lei e na ordem vigentes. Em suma, estão prontos para a revolução.
O desafio em qualquer sociedade que chega a este estado radical de coisas é encontrar politicamente um meio de quebrar essa cadeia de eventos que torna os ricos capazes de esmagar os pobres e levar os pobres à violência, e tornar a dinâmica entre liberdade e igualdade pender um pouco menos para o lado da liberdade e um pouco mais para a igualdade, e assim preservar a paz social. Durant explica-nos que isso foi feito pelos tiranos, particularmente Sólon (630 a.C. – 560 a.C.) e Psístrato (início do século VI a.C. – 527 a.C.).
Pertencentes à fina flor da aristocracia ateniense, eles foram capazes de estabelecer um novo pacto social aliviando o ônus financeiro dos pobres pelo perdão das dívidas e no caso de Psístrato pela taxação da renda dos abonados para financiar bens públicos e gerar empregos para os menos abonados. Durant conclui que esta nova lei e ordem, que impediu a explosão social, pela diminuição da concentração de renda, forneceu as bases do conforto e prosperidade que permitiram o florescimento da democracia em Atenas posteriormente.
A lição deste panorama da vida de Atenas e das outras cidades da Ática na Grécia Antiga é que a desigualdade em demasia corre o risco de autodestruir-se. Ela é inevitável caso haja liberdade, pois as pessoas apresentam diferentes capacidades, mas ela pode chegar a um ponto tal que torna a vida na sociedade inviável pela criação de um grupo de pessoas que fica destituído, sem direito a nada pois tanto a realidade material como a realidade jurídica estão contra elas, e sem compromisso nenhum em manter o sistema. A saída é aquela encontrada pelos tiranos: deixar os ricos enriquecerem, mas sem lhes permitir arrancar o couro dos pobres e dar a estes certas benesses que os tornem interessados na manutenção do sistema, e não na sua destruição.
Psístrato em sua época mandou construir templos, instituiu os Jogos Panatenaicos, em homenagem à deusa Atena, e assim deu um sentido de pertencimento a todos. Mais de 2000 anos depois, Arminio Fraga ao falar dos problemas do Brasil, toca num ponto importante que é na essência o mesmo desafio enfrentado pelos governantes atenienses: nosso sistema político é incapaz de enfrentar essa dialética liberdade x igualdade de modo que cada indivíduo se sinta parte do todo. Especificamente no caso do Brasil do século XXI, o desafio é fazer com que o dinheiro público seja investido para diminuir a desigualdade e oferecer bens sociais que beneficiem a grande maioria dos brasileiros, especialmente saúde e educação.
De fato, estamos em um ponto de nossa história em que as desigualdades são reforçadas por um regime político e jurídico que cria privilegiados, os quais usam seu poder para barrar qualquer tipo de reforma que afete seus interesses. Em sua entrevista, Fraga explica que sem que esses bens sejam oferecidos, não teremos viabilidade econômica, pois não conseguiremos aumentar a produtividade e inovar e sem tais requisitos nenhuma economia consegue hoje crescer e gerar empregos. Qual será a saída para nosso impasse político, em pleno século XXI? Será que teremos déspotas esclarecidos à nossa disposição que estabeleçam um novo pacto social, doa a quem doer? Ou nosso sistema implodirá por sua extrema desigualdade e inviabilidade no momento da história em que o capital humano é que faz a diferença? Veremos.