Nosso cérebro consegue formar uma ideia somente a partir dos dados que circulam em um determinado momento; e os dados disponíveis são criados pelos poderosos atuais, pelas modas em voga e pela opinião aceita. Se continuamos a negligenciar outras áreas do passado, os espaços em branco em nossa mente são reforçados e amontoamos cada vez mais conhecimento naqueles compartimentos dos quais já sabemos. O conhecimento parcial torna-se cada vez mais parcial e a ignorância perpetua-se a si mesma.
Trecho retirado do livro “Vanished Kingdoms – The History of Half-Forgotten Europe”, do historiador inglês Norman Davies
Talvez lá também, como em todas as culturas em decadência, o controle populacional tenha ido muito longe e a reprodução foi deixada a cargo dos fracassados. Talvez, à medida que a riqueza e o luxo aumentavam, a busca do prazer físico minou a vitalidade da raça e diminuiu sua vontade de viver ou de defender-se; uma nação nasce estoica e morre epicurista. Possivelmente o colapso do Egito, depois da queda de Akhenaton, afetou o comércio entre Creta e o Egito, diminuindo a riqueza dos reis minoicos. Creta não tinha grandes recursos internos; sua prosperidade exigia o comércio e mercados para suas indústrias; como a Inglaterra moderna, ela tinha se tornado perigosamente dependente do controle dos mares. Talvez guerras internas dizimaram a população masculina da ilha, deixando-a desunida frente a um ataque estrangeiro. Talvez um terremoto fez o palácio tremer até virar uma ruína ou uma revolução raivosa vingou-se em um ano de terror as opressões acumuladas ao longo de séculos.
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre um fictício proprietário de terras na Rússia do século XIX, Kostanjoglo, para quem a pessoa que não trabalha, que não consegue realizar nada porque não segue sua vocação natural, presta um desserviço à humanidade e a Deus, principalmente, que criou tudo e deve ser imitado. Nesta semana, meu enfoque será no polo oposto, o da destruição e para tanto citarei dois historiadores.
O primeiro já é conhecido daqueles que me acompanham regularmente, Will Durant, pois em vários artigos eu comentei trechos de seu livro sobre o Renascimento. Will Durant é autor de uma História da Civilização juntamente com sua esposa, Ariel Durant. No volume aqui citado, seus olhos se voltam para a civilização grega, e para começar seu percurso ele descreve Creta, que foi a primeira civilização europeia, a qual deixou muitas contribuições no reino da pintura, da escultura, da produção de cerâmicas, da arquitetura e da criação do sistema de coleta e descarte de efluentes mais sofisticado da Antiguidade, que depois de 4.000 anos ainda funciona. Para situar o cidadão do século XXI, basta dizer que a ilha de Creta é a terra do Minotauro, um ser mítico, filho de Parsífae, esposa do rei Minos, e de um touro por quem a rainha se apaixonou. O rei manda prender este bastardo, metade homem, metade touro, no labirinto, que nada mais é do que o Palácio do rei Minos em Knossos, cujas ruínas, reveladas pelas escavações comandadas pelo arqueólogo britânico Arthur Evans (1851-1941), ainda podem ser vistas naquela ilha que hoje em dia faz parte da Grécia. Eu mesma estive lá e pude ver um afresco representando o Minotauro. Aliás, não faltam exuberantes representações artísticas do touro no Museu Arqueológico de Heraklion, a capital, já que o animal era cultuado como símbolo de fertilidade. As mulheres de Creta eram famosas por usarem jaquetas curtas, deixando os seios à mostra. Usando colares e pulseiras eram o cúmulo da elegância, podem crer!
Infelizmente a escrita minoica ainda não foi decifrada, então não se sabe ao certo da história de Creta e o que causou o incêndio e a destruição do palácio em Knossos. Durant tece hipóteses, conforme o trecho citado na abertura deste artigo, tecendo paralelos com outras épocas e outros povos, que ele apenas sugere ao leitor informado, o que faz com que a descrição das vicissitudes da civilização minoica adquiram um sentido para nós em pleno século XXI da Grande Transformação que está sendo causada pela epidemia de COVID.
Terá Creta vivido um colapso populacional, em que as pessoas produtivas deixaram de se reproduzir porque não consideravam valer mais a pena? Será que o exaurimento dos recursos naturais da ilha pela superexploração – Durant menciona que à época do auge de Creta a ilha era repleta de bosques de cedros e ciprestes e hoje só sobraram as pedras – tornou a sociedade vulnerável? Será que Creta, que construíra um império no Mar Egeu, sofreu a sina de todos os impérios e acabou vítima do seu próprio sucesso devido à dependência exagerada de uma única fonte de riquezas, no caso o comércio marítimo? Será que as pessoas perderam fé nos valores que antes as uniam e deixaram de ver-se como um só povo e foram facilmente conquistadas? Será que houve uma revolução das classes baixas contra a elite como houve na França no século XVIII, que levou a um regime de terror? Ou simplesmente a destruição deveu-se a uma calamidade natural?
Nunca saberemos, claro, pois os minoicos deixaram rastros materiais da sua capacidade criativa, mas não suficientes para que pudéssemos ter acesso a sua versão dos fatos, que acaba assim caindo para sempre em um buraco negro de esquecimento e não existência. Para Norman Davies, o outro historiador citado na abertura deste artigo, esta é a grande lição da História: a história que conhecemos é aquele mísero pedaço que sobrou da destruição da existência e portanto da narrativa da vida de tantos outros povos, reinos, países, impérios que tiveram sua própria língua e cultura, seus próprios sucessos e fracassos. Contudo, por terem sido derrotados, tiveram sua sobrevivência na memória coletiva da humanidade inviabilizada.
Nesse sentido, o destino de Creta, não foi de todo cruel, ao menos por enquanto. A Grécia, como herdeira material e intelectual da civilização minoica, ao menos preservou a lenda do Minotauro vagando pelo palácio de Knossos até ser morto por Teseu com a ajuda de Ariadne. E sendo a Grécia uma das fontes da civilização ocidental, enquanto esta perdurar, ao menos haverá museus e sítios arqueológicos que preservarão o que resta do legado minoico. Mas quando a civilização ocidental for destruída, o patrimônio material e espiritual tanto de uma quanto de outra cairão inevitavelmente no buraco negro que engole tudo aquilo que um dia teve um significado para um determinado povo, em uma determinada localização geográfica num certo momento da história do homo sapiens na Terra.
Prezados leitores, nós brasileiros somos produto desses trágicos esquecimentos que a História reserva aos perdedores. As civilizações que surgiram em solo brasileiro foram tragadas pelo clima tropical e pela morte dos habitantes causada pelo contato com os brancos. Temos todos que aqui nascemos um patrimônio genético que é em grande parte indígena, mas o que nos sobrou em termos de memória coletiva incorporada à ideia de que temos de nós mesmos? Em momentos de crise como este, em que a comunhão de esforços é de suma importância, o sentimento de termos todos uma identidade comum faz falta. Quem sabe, surja por aí um Arthur Evans que se embrenhará nos rincões da Amazônia e trará à luz os vestígios materiais de povos que aqui habitaram? Talvez então tenhamos uma noção mais bem definida do que significa ter nascido e habitado em um local chamado Brasil.