Na cabeça não fica nada, é como depois de uma conversa com um homem da sociedade, ele fala de tudo, a tudo se refere de passagem, diz tudo que extraiu de uns livrinhos aqui e ali, tudo é colorido, bonito, mas se de tudo aquilo algo que ficou dentro da nossa cabeça vem para fora, a gente vê então que até uma conversa com um vendedor modesto, que só sabe falar do seu ofício, mas o conhece com firmeza e experiência, é melhor do que todas essas bugigangas.
Trecho retirado do livro “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)
O CFM não incentiva o tratamento precoce ou o condena, tampouco bane. Falar que a hidroxicloroquina e a ivermectina matam é falácia. Quem quer fazer o tratamento precoce, que faça. Quem não quiser, não faça.
Trecho da entrevista que o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, deu ao programa Jornal da Manhã na rádio Jovem Pan
Prezados leitores, nas últimas semanas tenho acompanhado a saga de Tchítchikov pela província russa longínqua na qual ele quer ganhar dinheiro aproveitando-se da boa vontade dos proprietários locais que o tomam como um homem muito respeitável, porque fala as coisas certas para agradar as pessoas e assim consegue arrancar o que quer delas. No ponto da narrativa em que o trecho que abre este artigo aparece, Tchítchikov acabou de assinar as escrituras de compra e venda de mujiques mortos, pagando uma ninharia por eles aos proprietários.
Espalha-se então na cidade que ele irá levar os camponeses comprados, que segundo os registros oficiais ainda estão vivos, para uma nova província do Império para criar um novo assentamento e esse boato, totalmente infundado, faz com que a sociedade local o admire ainda mais. Lisonjeado com tanta atenção e feliz da vida com o sucesso da sua empreitada ele vai ficando na cidade, frequentando os bailes, os banquetes e as reuniões que se sucedem. As damas imaginam que Tchítchikov é um homem rico e tentam por isso chamar-lhe a atenção. Ele, como fino escroque, desempenha seu papel, e ao mesmo tempo sabe ver o fundo das coisas, sabe que por trás das conversas civilizadas dos leitores dos “livrinhos” há um bando de tolos que não têm o discernimento de perceber que tipo de negócio Tchítchikov realmente fez, mas que se acham muito letrados porque fazem uma citação “douta” para mostrar que fazem parte da fina flor da sociedade.
Em suma, o mundo onde habitam as almas mortas é o mundo não só dos camponeses cuja morte não foi comunicada às autoridades, mas a dos aristocratas que usam palavras belas tiradas de alguma fonte respeitável, mas que acabam sendo totalmente desprovidas de significado, pois seu uso não é fruto de reflexão, mas de um esforço cotidiano de fazer crer aos outros e a si mesmos que pertencem à casta dos melhores porque sabem comportar-se em sociedade falando com desenvoltura e citando as autoridades. Mas Tchítchikov sabe que é o mujique que sabe fazer ferraduras, que sabe fazer móveis e botas de couro que duram ou consertar a cerca de arame da propriedade que tem o conhecimento verdadeiro que sustenta aquela sociedade de nobres frívolos e otários.
Todo esse introito tem o objetivo de tecer um paralelo com nossa distopia sanitária atual e colocar-lhes uma pergunta: quem de vocês ainda não deu um palpite nas mídias sociais sobre o uso da hidroxicloroquina para tratamento precoce da COVID? Quem não tem uma opinião sobre a picaretagem ou a sensatez do uso do remédio? Nesta semana uma amiga mandou-me uma mensagem de WhatsApp com uma série de fatos que ela diligentemente coletou a partir das suas fontes: a médica do Emílio Ribas que afirma que como para 80% das pessoas a COVID não é grave, tomar ou não hidroxicloroquina é indiferente porque o indivíduo ficaria bem de qualquer forma; que cinco pessoas morreram por problemas no fígado causados pelo tratamento precoce; que a AMB proibiu o tratamento, entre outros.
Não desconfio de jeito nenhum que minha amiga mente, pois ela consulta os “livrinhos” corretos: Jornal da Cultura e outros veículos tradicionais da imprensa, depoimentos de médicos de hospitais públicos renomados. Apesar de todo esse cuidado, considero ser leviano da parte dela usar essas passagens coloridas e bonitas para formar uma opinião definitiva sobre o tratamento precoce da COVID e condenar de maneira furibunda aqueles que o defendem. Minha querida amiga não é médica, ela não tem experiência com o tratamento de sintomas clínicos, e principalmente com a prática da medicina, que não é ciência, mas arte, como ouvi um dia de um perito durante uma aula em que ele pediu ao público para dizer o que é a medicina.
Com relação a encher a boca para falar que a hidroxicloroquina não tem eficácia comprovada, só quem pode fazer tais afirmações com alguma autoridade é quem leu os estudos publicados nas revistas científicas, entendeu as conclusões e mais, tem conhecimento suficiente de metodologia científica para saber se a pesquisa foi bem elaborada ou não de forma que seus resultados se sustentem e não tenham falhas intrínsecas.
Em suma, aqueles que listam fatos para dar credibilidade às suas afirmações, mas não tem formação acadêmica suficiente para sopesar os diferentes fatos, perceber inconsistências e ao final ordenar as peças do quebra-cabeças, não podem considerar-se intelectualmente superiores aos que não concordam com eles. Sua única habilidade consiste em se apoiar na opinião das autoridades que estão em voga na mídia. Nesse sentido, são palpiteiros porque o que fazem é escolher um lado com o qual tem mais afinidade por razões ideológicas e procuram uma justificativa extraindo daqui e dali alguma bugiganga para apresentar como algo balizado na ciência.
Nesse sentido recuso-me a desempenhar esse papel de palpiteira. Não tenho conhecimento especializado suficiente para pronunciar um veredito sobre o tratamento precoce da COVID. Pode ser que para algumas pessoas ele seja eficaz ou pode ser que ele seja um placebo, ou pode ser que ele seja prejudicial a outras pessoas. Assim, prefiro usar o bom senso do presidente do Conselho Federal de Medicina: em um momento em que estamos lidando com uma nova doença e em que ainda não há um protocolo de tratamento estabelecido, o melhor é deixar que o médico tome a decisão de usar ou não, considerando as características do seu paciente, o estágio da doença e tudo aquilo que o médico leva em conta para praticar a arte da anamnese.
Prezados leitores, a lição de Gógol sobre os palpiteiros bem-nascidos permanece válida nos dias de hoje: entre os colhedores de informações aqui e acolá que consideram ser isso suficiente para emitir opiniões e aqueles que formam seu julgamento a partir de sua experiência prática aliada à leitura de livros que possam iluminar e expandir tal experiência, fiquemos com estes.