Um jovem radiante de hoje em dia recuaria com horror se lhe mostrassem seu próprio retrato na velhice. Recolha no caminho, ao sair dos anos da juventude gentil e entrar na áspera e empedernida idade madura, recolha e guarde consigo todos os movimentos humanos, não os deixe caídos pela estrada: depois não poderá mais pegá-los! É terrível e assustadora a velhice que está por vir e nada ela dá em troca, muito ao contrário! A sepultura é mais misericordiosa do que a velhice; na sepultura está escrito: aqui jaz um homem! Mas nada se lê nas feições frias e insensíveis da velhice desumana.
Trecho retirado do livro “Almas Mortas” de Nikolai Gógol (1809-1852)
Antes, a vida era uma corrida de 100 metros, hoje é uma maratona. Para chegar lá na frente com qualidade de vida, é preciso se preparar, e não só economicamente.
Trecho retirado da entrevista dada ao jornal O Estado de São Paulo por Alexandre Kalache, que dirigiu por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), na Suíça
Aos 88 anos, é inevitável não me revoltar com o fato de o tempo que me resta estar sendo sugado por uma pandemia.
Trecho retirado de depoimento dado à revista VEJA pelo autor de novelas Manoel Carlos, que está há um ano sem sair de casa por causa da pandemia de COVID
Prezados leitores, no plériplo de Tchítchikov, o herói do livro “Almas Mortas” que sai em busca de mujiques mortos para comprar dos proprietários de terras do interior da Rússia, história já comentada neste meu humilde espaço, ele encontra um homem de 70 anos chamado de Pliúchkin. Pliúchkin é um viúvo que vive sozinho em sua propriedade, apesar de ter dois filhos, e que se transformou em um ser tão patologicamente ganancioso e avarento que passa os dias recolhendo quinquilharias, como pregos, botões, botas surradas, papéis, e tornando a vida dos seus empregados a mais miserável possível, acusando-os de serem ladrões e preguiçosos. É um personagem caricato, sem dúvida, mas conforme o trecho que abre este artigo, descreve o lado negro da velhice, que no século XIX era muito mais proeminente do que qualquer aspecto positivo que se possa atribuir à senescência.
Gógol contrapõe o período da juventude em que o indivíduo sonha, tem sentimentos e esperanças, é sensível à beleza da vida e das pessoas, realiza coisas, com o período final de um homem como Pliúchkin, que é completamente indiferente a qualquer ser humano que não seja ele e sua obsessão em tirar vantagem das pessoas para acumular riquezas que se transformam em pó por não serem usadas por ninguém. A moral da história fica sendo esta: a morte é mais digna do que a decrepitude da velhice, pois a morte recupera o indivíduo que existiu nos seus áureos tempos, pela memória daquilo que ele foi, ao passo que a velhice é um período que se arrasta e faz aflorar o pior em indivíduos que não têm presente nem futuro e por isso perdem a capacidade de qualquer sentimento mais elevado como compaixão, amor, amizade, abnegação.
Passaram-se dois séculos desde a época em que um homem de 70 anos como Pliúchkin só tinha pela frente a decadência. Será que evoluímos nesse aspecto? O doutor Alexandre Kalache, de 71 anos, estudioso do envelhecimento, garante que sim. Sua metáfora da corrida de 100 metros contra a maratona de 5000 metros revela sua visão, antenada com as possibilidades colocadas ao ser humano no século XXI. Na época em que nós éramos meros velocistas, o trajeto era curto e chegávamos na reta final sem fôlego, alquebrados devido ao esforço, ou seja, morríamos depois de algumas poucas décadas de vida, no máximo quatro, e o final era o limbo descrito por Gógol entre os anos da juventude e a morte, em que se estava tecnicamente vivo, mas biológica e espiritualmente morto.
Atualmente, o avanço da ciência, a drástica diminuição das doenças infecciosas pela melhoria da qualidade da água bebida pela população e da higiene em geral, transformou-nos em corredores de longa distância: passamos por várias etapas e o segredo para chegar à reta de chegada é ir dosando o esforço e acumular ao longo da vida recursos suficientes para manter o fôlego do começo ao fim. Na entrevista de Kalache ao jornal O Estado de São Paulo, ele descreve o que é necessário aos maratonistas do século XXI: saúde que dê energia ao indivíduo para percorrer os 5.000 metros, educação para ter empregabilidade e conseguir ter uma vida produtiva e obter renda ao longo das mais de 80 décadas de vida que se espera ter, e uma economia que possa gerar empregos que façam uso das capacidades dos idosos.
Sem esses elementos, a transformação do sprinter em maratonista por força do aumento geral da expectativa de vida ameaça fazer da velhice protelada um pesadelo que nem a imaginação criativa de um escritor como Gógol poderia ter vislumbrado. De fato, um idoso sem renda, sem aposentadoria e que permaneça assim sem perspectivas por décadas, certamente terá uma vida muito pior que a dos Pliúchkin, cuja decrepitude embora intensa, durava pouco. Por outro lado, aqueles que conseguem ter as características necessárias para envelhecer com qualidade de vida são certamente o orgulho da nossa civilização do século XXI. Manuel Carlos é um exemplo desse grupo de iluminados.
Aos 88 anos, ele ainda trabalha para a Rede Globo, que faz uso dos 70 anos de experiência de Manuel na TV: está escrevendo a continuação de uma minissérie, a Presença de Anita, e um projeto de teleteatro. Ele ainda têm muitos sonhos e desejos: quer voltar a andar pelo Leblon, o bairro do Rio de Janeiro onde mora, caminhar pelas calçadas pra tomar café em uma livraria. Manuel Carlos é portanto um homem que está a anos-luz do personagem de Gógol, um usurário improdutivo que só causava mal àqueles que o rodeavam, isto é, os mujiques explorados. E no entanto, o futuro do nosso herói do século XXI foi solapado, como ele próprio admite, pelo meteorito que caiu sobre todos nós, a COVID-19. Há um ano trancado em casa, o novelista não sabe se dará tempo para ele voltar a ter uma vida normal quando a pandemia passar.
Prezados leitores, James Joyce, o autor irlandês, pela boca do seu personagem Stephen em “Ulysses”, dizia que a “História é um pesadelo do qual estou tentando acordar”. O momento em que vivemos parece tornar essas palavras pertinentes: será que quando acordarmos designaremos os períodos antes e depois com um a.C. (antes da COVID) e um d.C. (depois da COVID)? Será que o impacto da COVID no Brasil será tão grande que os maratonistas lépidos como Manoel Carlos passarão a arrastar-se pela pista em virtude da perda do emprego, das sequelas na saúde naqueles que sobreviveram à infecção pelo vírus da COVID, da incapacidade de fazer contribuições previdenciárias para garantir a aposentadoria, da falta de oportunidades de reciclagem profissional causada pela extinção definitiva de milhares de postos de trabalho? Qualquer que seja o desenlace, o tempo está batendo à nossa porta: se ele será um novo tempo, de desafios estimulantes, ou um tempo rançoso, de decrepitude e decadência, ainda é cedo para saber.