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Direito: fato ou instituição?

Posted by on 11/03/2021

A opinião mais popular, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, insiste que os juízes deveriam sempre, em cada decisão, seguir a lei ao invés de tentar melhorá-la. Eles podem não gostar da lei com que se deparam – ela pode exigir deles que despeje uma viúva às vésperas do Natal em meio a uma tempestade de neve – mas eles devem aplicá-la mesmo assim. Infelizmente, de acordo com a opinião popular, alguns juízes não aceitam aquela sábia restrição; dissimulada ou abertamente, eles distorcem a lei para satisfazer seus próprios objetivos ou inclinações políticas. Estes são os maus juízes, os usurpadores, os destruidores da democracia.

Trecho retirado do livro “O Império do Direito”, do filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013)

 

[…]não há na verdade lei sobre nenhum assunto, mas somente retórica que os juízes utilizam para dar um verniz a decisões ditadas por preferências de classe ou ideológicas.

Trecho retirado do livro “O Império do Direito”, do filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013)

 

    Prezados leitores, uma experiência que eu sempre considero proveitosa é conversar com motoristas de táxi e agora mais recentemente de Uber. Nesses tempos de radicalização, insuflada pelas mídias sociais, o segredo para conseguir obter a verdadeira opinião deles, que eles têm medo de revelar, é soltar uma frase neutra como, por exemplo, “estamos vivendo o inferno com esta pandemia” para começarmos a conversar. Uma vez eles concordando que os tempos de COVID são uma loucura, o passo seguinte é concordar com o que eles falam, concordar de maneira enfática, até chegar o momento crucial em que eles dirão “olha senhora, cada um tem sua opinião, eu respeito, mas …”. É então que a verdade vem à tona e eles revelam suas reais preferências políticas. Com base em meu humilde histórico de utilização de aplicativos e táxis de rua, posso dizer que os motoristas são em sua maioria bolsonaristas e anti-Dória. Querem e precisam trabalhar e acham absurdas as medidas de lockdown, porque não adiantam nada e vão levar todos à miséria. Os motoristas de Uber são ainda mais radicais, pois geralmente são pessoas que perderem o emprego recentemente e viram nessa ocupação uma tábua de salvação para pagarem suas contas. Como a remuneração é pouca, eles precisam trabalhar longas horas por dia para atingir metas diárias e as restrições de circulação só os atrapalham.

    Há uma outra unanimidade entre os membros dessa categoria profissional, que, com o desemprego recorde que o Brasil está vivendo, está cada vez maior. Todos consideram que os membros do Supremo Tribunal Federal são corruptos e levam dinheiro para tomar decisões. Com certeza eles concordariam com o trecho que abre este humilde artigo, trecho este que faz parte da explicação de Ronald Dworkin sobre a visão do que é o direito que ele denomina de fato óbvio. O direito é um fato óbvio porque ele se encontra materializado naquilo que as diversas instituições estabeleceram como tal, compreendendo as decisões dos tribunais e as leis aprovadas na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais. Se há um direito corporificado dessa maneira então coloca-se a questão de ser ou não fiel a estes fatos óbvios. Para o público leigo, ater-se ao que está posto, sem invencionices, é uma virtude, pois significa que a letra da lei, aprovada no legislativo, eleito pelo povo, foi colocada em prática, de maneira previsível.  Daí que os juízes que não aplicam a lei tal como ela é minam a democracia, ou como costumamos aqui dizer, praticam o famigerado ativismo judiciário. Os partidários do ativismo judiciário, claro, dirão o contrário: o bom juiz não aplica a lei de maneira mecânica, mas leva em conta a justiça ou a injustiça da sua decisão, o efeito que ela irá causar na prática para ignorá-la quando for preciso.

    Segundo a explicação de Dworkin, para além dessa visão popular de fidelidade ou não à lei, os defensores dessa teoria no meio acadêmico têm uma formulação mais sofisticada do direito como fato óbvio: muitas vezes obviamente não há lei nenhuma, ou seja o legislador não previu uma determinada situação ou nenhum juiz tomou uma decisão anterior sobre um caso análogo que fornecesse uma baliza para o juiz atual; pode ocorrer também de haver uma lei, mas ela ter conceitos vagos, como por exemplo, o de “tempo razoável”. Em última análise, o efeito é o mesmo: há uma falta de prescrição constatável na prática, seja pela leitura da lei obscura ou pela consulta infrutífera às leis publicadas sobre o assunto em pauta.

    Nesse ponto, o problema não é mais a respeito da fidelidade ou não à lei, mas o que fazer na ausência de lei. Como usar a discricionariedade necessária para decidir o caso? Preservando o espírito das leis relacionadas ao assunto? Ou tentando obter o resultado que o juiz acredita será aquele que o povo quer? Ou ainda tentando se o mais justo e sábio possível? A versão mais radical dessa teoria que vê o direito como um conjunto de fatos óbvios afirma que as decisões prévias das instituições, sejam os tribunais ou os órgãos legislativos, são em sua maioria vagas, ambíguas, incompletas ou inconsistentes.

    Chega-se então a uma segunda conclusão, que é o segundo trecho citado acima: na realidade não há direito posto sobre coisa nenhuma e o juiz recorre a fontes jurídicas como um artifício retórico para encobrir e dar uma justificativa a posteriori para suas preferências pessoais, pois não há nenhum parâmetro concreto.

    Fecha-se assim um ciclo: sai-se da confiança cega dos leigos de que há lei para tudo e basta aplicá-la de maneira honesta, para o cinismo da afirmação de que na verdade não há lei nenhuma em lugar nenhum e cada juiz decide como quer. Nesse sentido, qualquer discordância teórica sobre o que é o direito é apenas uma disputa política disfarçada: as leis promulgadas e decisões tomadas são fatos, sobre os quais não se pode discordar, a única discordância vislumbrada por essa teoria é sobre o que o direito deveria ser e nesse campo cada um tem sua opinião.

    Dworkin coloca-se frontalmente contra a visão do fato óbvio porque a negação da possibilidade de discordância sobre o que é o direito – afinal ele está posto na realidade fática, seja por sua presença ou por sua total ausência – impede que haja uma crítica inteligente e construtiva sobre o que os juízes fazem na prática. E isso é grave porque em sua visão o direito é a instituição social mais estruturada e reveladora, de modo que a reflexão sobre o que é o direito permite revelar os valores sociais subjacentes e aprimorá-lo enquanto instituição.

    Prezados leitores, meu objetivo ao abordar uma pequena parte da obra do filósofo americano foi chamar a atenção para a relevância das reflexões contidas em O Império do Direito para a visão negativa que nós, brasileiros, normalmente temos do Judiciário e o impacto disso sobre a legitimidade da nossa democracia. Será que nossos magistrados deixam de aplicar a lei mediante suborno? Será que eles simplesmente decidem como lhes dá na cabeça de acordo com seu projeto de poder? Serão estes os dois problemas centrais que explicam nossa insatisfação com as instituições? Ou será que, como propõe Dworkin, pensar em termos de ausência ou presença concreta das leis e das decisões é uma falsa questão? Será que a teoria do fato óbvio encobre o ponto principal de que o direito é uma instituição social e portanto, não pode ser reduzida à ação dos operadores do Direito individuais, mas deve ser entendida pela interação dos diferentes agentes, de acordo com as convenções em vigor na sociedade?

    Sob essa perspectiva, a oscilação entre a ingenuidade e o cinismo não nos mostra um caminho frutífero para entendermos o que é o direito e para propormos o que ele deve ser. É preciso investigar as estruturas e é isso que Dworkin tenta em sua obra.  Meus queridos motoristas de táxi e do Uber, meus queridos conterrâneos indignados com as idas e vindas do Judiciário desculpem-me, mas não se trata de apontar o dedo para um Ministro do STF como vendido ou incompetente, o buraco é mais embaixo. Se o Direito enquanto instituição social está fraturado, dividido, inconsistente é porque nossa sociedade também sofre dos mesmos males. Oxalá possamos coletivamente chegar a esse diagnóstico para o bem da nossa mais reveladora instituição e da nossa democracia.

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