Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada ao que já tinhas dito. Por que vieste nos atrapalhar? Pois vieste nos atrapalhar e tu mesmo o sabes. Mas sabes o que vai acontecer amanhã? Não sei quem és e nem quero saber: és Ele ou apenas a semelhança d’Ele, mas amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijou os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer carvão para tua fogueira, sabias? É, é possível que o saibas.
Trecho retirado do Grande Inquisidor, capítulo do romance Os Irmãos Karamazov, publicado em 1880, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
As ideias elevadas definham em tempos de paz prolongada; no lugar delas aparecem o cinismo, a indiferença, o tédio e muito, muito escárnio maldoso, e isso como forma de entretenimento, não por algum motivo útil. É possível dizer com certeza que a paz prolongada torna as pessoas mais cruéis. Em tempos de paz prolongada a balança sempre pende para o que há de mais estúpido e grosseiro na humanidade, em especial para a riqueza e o capital.
Trecho retirado do conto “O Paradoxalista”, publicado em 1876, de Fiódor Dostoiévski
Prezados leitores, já assisti a uma encenação de O Grande Inquisidor realizada pelo ator paulistano Celso Frateschi em uma sala de teatro minúscula. Mesmo que a Secretária de Cultura desse largos subsídios a produtores teatrais e permitisse que os ingressos fossem baratíssimos e que a peça tivesse à disposição cenários e figurinos para reproduzir uma prisão na Sevilha do século XVI, durante o auge do poder da Santa Inquisição, encarregada de eliminar o pensamento herético do seio das sociedades cristãs, seria difícil atrair muitas pessoas, dado o forte conteúdo filosófico desta parte dos Irmãos Karamazov. Trata-se de um diálogo entre o Grande Inquisidor e um Prisioneiro que é nada mais nada menos do que Jesus Cristo em carne e osso, como o autor do diálogo, Ivan, esclarece a seu irmão Aliocha.
O trecho que abre este artigo é uma amostra do cerne da mensagem do Grande Inquisidor: Jesus em um hipotético retorno à Terra para salvar a humanidade atrapalha a bem montada estrutura da Igreja Católica que submete os homens pelo poder, pura e simplesmente. Como toda pessoa que exerce liderança política e sente-se à vontade em fazê-lo, o Grande Inquisidor é cínico em relação à natureza humana: os homens são débeis física e mentalmente, preferem o pão à liberdade, preferem renunciar a pensar por si próprios e seguir as ordens de um líder desde que suas necessidades materiais estejam satisfeitas, ao menos minimamente. É por isso que se Jesus voltar e começar a pregar ele será perseguido e trucidado como o foi em sua primeira vinda: os donos do poder, entre os quais àquela época a Igreja Católica Apostólica Romana, tratarão de manipular o povo para fazê-los crer que aquele sujeito esfarrapado que desafia os poderes constituídos com base na opressão e na violência, só trará miséria e ostracismo a quem aderir a ele.
O Grande Inquisidor, que zela pela pureza ideológica da Igreja Católica, dá uma lição de moral ao Prisioneiro, ele mesmo a fonte de toda ética cristã, ao menos oficialmente. Por que voltar? Cristo já cumpriu seu papel, permitindo que o mito criado em torno da sua pessoa levasse à criação e à consolidação da Igreja. Seu retorno, pregando e pior, exemplificando uma certa conduta de vida de quem não vive só de pão, só fará atrapalhar a ordem e a paz que reinam graças à atuação eficaz dos príncipes da Igreja. Ao mesmo tempo que desfia sua arenga sobre os males que este Prisioneiro que está disposto a sacrificar sua vida pelo bem de todos poderá causar, o Grande Inquisidor se irrita e se perturba com o olhar fixo e penetrante que o objeto de seu desprezo e da sua crítica mantém sobre ele.
O final desse confronto entre dois personagens com visões de mundo tão diferentes deixa o leitor maravilhado. O Grande Inquisidor espera que Jesus reaja às suas injúrias e responda à altura, pregando ele mesmo as ideias do autêntico cristianismo deturpado pela Igreja representada pelo Grande Inquisidor. O Prisioneiro, submetido ao arbítrio da autoridade eclesiástica, que poderia tê-lo mandado à fogueira se assim o quisesse para se livrar do incômodo, simplesmente dá-lhe um beijo na boca. O velho cínico estremece pois não esperava aquele gesto. Ele abre a porta da cadeia e diz a Jesus “Vai e não voltes mais… Não voltes em hipótese nenhuma… nunca, nunca!”
Quem venceu? Jesus Cristo ou O Grande Inquisidor? O prisioneiro que responde à violência com um beijo de amor ou o carcereiro que tem o poder de vida e morte, de prender e soltar? Quem Dostoiévski defende? O autêntico Salvador do Mundo contra a manipulação perpetrada pela Igreja de Roma? Ou Dostoiévski considera que a visão maquiavélica do Grande Inquisidor é mais realista e portanto, a que no final das contas deve triunfar? O autor russo dá voz a diferentes personalidades, mostrando diferentes pontos de vista cuja radicalidade nos faz refletir. O pragmatismo desabrido do príncipe da Igreja, que sabe como poucos conquistar e consolidar o poder, usufruir dos privilégios que ele lhes dá, sem ilusões sobre a pureza da natureza humana. A mensagem de amor, fé e esperança de um Cristo ressuscitado que não desiste jamais, apesar de todas as dificuldades, que persiste tentando angariar as almas, por mais perdidas que elas possam estar.
Essa polifonia que desconcerta e ilumina é presente nas grandes e nas pequenas obras de Dostoiévski. O segundo trecho que abre este artigo faz parte da argumentação de um paradoxalista, como é definido o autor de uma defesa racional da guerra pelo narrador da história. A guerra não é uma calamidade, na verdade é uma benção porque ela foca a mente em prol de feitos grandiosos para a solução dos problemas de sobrevivência que surgem, molda o caráter pois define as prioridades do ser humano, permitindo que as pessoas se unam para garantir o bem comum, elevando o espírito pelo sacrifício da própria vida em prol do amor fraterno. A paz ao contrário, gera a indolência, a submissão aos prazeres, às veleidades, ao luxo, ao glamour, às ideais vãs e espetaculares que nada mais fazem do que preencher o vácuo imposto pela falta de propósito autêntico.
Novamente cabe a série de perguntas colocada em relação ao Grande Inquisidor. Com quem Dostoiévski concorda? Com os pacifistas ou com os militaristas? Para o autor do conto a guerra pode ser justa? Qual o campo por ele escolhido? Ou ele não escolhe nenhum? Ter resposta a todas essas perguntas não é relevante, para o leitor importa que confrontado com visões antagônicas, ele aprenda com umas e outras e possa obter a sua própria, quer identificando-se com alguma dessas vozes, quer negando-as completamente, quer amalgamando-as em uma síntese criadora. Desse face-a-face com os múltiplos ângulos de uma questão, o leitor de Dostoiévski sai consciente da complexidade de fazer escolhas.
Prezados leitores, ler o Grande Inquisidor era obrigatório em universidades americanas de elite, ao menos até a década de 90 do século XX, como me garante quem por lá passou então. Não é de se admirar, considerando que o ensino universitário tinha como objetivo dar aos alunos ferramentas para aprender a pensar por si próprios e formar suas próprias opiniões, pela exposição aos mais diversos pontos de vista. A polifonia universitária levaria à harmonia da consolidação das ideias. Talvez a falta de contato com autores complexos como Dostoiévski, cuja apreensão exige um esforço contínuo de lapidação da mente, seja responsável por tantas pessoas com grau universitário se perderem na cacofonia das redes sociais, palco de troca de insultos pessoais, de estigmatizações, de argumentação rasa.
O Prisioneiro, o Paradoxalista, o Grande Inquisidor são personagens fictícios, mas que nos preparam para enfrentar mentalmente a ambiguidade da vida e suas difíceis escolhas, apresentando-nos as nuances, as zonas cinzentas, as luzes e as sombras. Enquanto houver seres humanos que estejam dispostos a olhar-se no espelho com franqueza e não necessariamente com admiração inocente e narcisista, haverá sempre quem cultue essas grandes figuras da literatura.