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Sacrifícios rumo ao progresso

Posted by on 26/01/2021

A morte moderna não tem nenhum significado que a transcenda ou remeta a outros valores. Em quase todos os casos é, simplesmente, o fim inevitável de um processo natural. Num mundo de fatos, a morte é mais um fato. Mas como é um fato desagradável, um fato que questiona todas as nossas concepções e o próprio sentido da nossa vida, a filosofia do progresso (progresso para onde e de onde?, pergunta Scheler) pretende escamotear sua presença. No mundo moderno, tudo funciona como se a morte não existisse. Ninguém conta com ela. Tudo a suprime: os discursos dos políticos, os anúncios dos comerciantes, a moral pública, os costumes, a alegria a preço baixo e a saúde ao alcance de todos oferecida por hospitais, farmácias e campos de esporte.

Trecho retirado do ensaio “Todos os Santos, Finados” escrito pelo crítico, poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz 1914-1998

Tomei por conta que quero viajar, e não para me sentir mais segura. Uma vacina que dá 50% de segurança para mim não é uma vacina. Tomei foi água.

Palavras de Nathanna Faria Ceschin, enfermeira na Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Espírito Santo, em vídeo gravado por ela e veiculado nas redes sociais

    Prezados leitores, “Todos os Santos, Finados” faz parte de uma série de ensaios reunidos em um livro intitulado “O labirinto da solidão”, em que Otávio Paz reflete sobre o caráter do mexicano, enfocando o substrato da sua psiquê: a tensão constante entre a herança dos povos que habitavam a Mesoamérica, entre os quais os olmecas, os toltecas, os mixtecas, os tlaxcaltecas, os zapotecas, e os astecas (para mencionar apenas aqueles que deixaram vestígios arqueológicos de sua presença nas terras do que no futuro seria o México fruto da Conquista), e a herança espanhola, trazida por Hernán Cortés.

    Dotado de um grande conhecimento da história do seu país, Paz tenta entender certas características do povo de uma maneira equilibrada, pois ele não cai na armadilha de adotar nenhum tipo de visão supremacista, quer indígena, quer europeia. Os indígenas não eram vítimas inocentes dos conquistadores, afinal eles lutaram e perderam entre outros motivos porque tinham uma visão ambígua dos espanhóis, quase como deuses salvadores e por isso muitas tribos aliaram-se a eles contra os então dominantes astecas. Por outro lado, os espanhóis trouxeram consigo, além dos germes e balas, uma religião católica que se pretendia universal e inclusiva, abarcando ricos e pobres, todos passíveis de serem tocados pela graça de Deus, o que era uma novidade e terras de sociedades teocráticas e altamente hierarquizadas, como eram as dos povos indígenas de então.

    Um exemplo desta abordagem em que ele analisa as diferentes verdades propostas pelas culturas que estiveram em choque no seu país é a reflexão que faz sobre o culto da morte no México, representado pelo Dia de Finados. Paz explica o que era a morte para os astecas e porque realizavam sacrifícios humanos: morrer era participar da regeneração das forças criadoras e o sacrifício trazia saúde cósmica, pois o sangue humano era o alimento da tal regeneração: o mundo vivia graças ao sangue e à morte dos homens. Para os cristãos que fundaram a Nova Espanha, ao contrário, a morte é uma redenção porque permite a salvação do indivíduo, só ele, por meio de Jesus Cristo. O mundo, a história, a sociedade, já estão condenados pelo pecado original, só resta a cada um de nós colocarmos nossas esperanças na vida transcendente. Por mais que a visão seja num caso a da morte como confirmação do mundo e no outro a da morte como negação do mundo, tanto os astecas como os cristãos tinham valores culturais que embasavam sua metafísica.

    Esse contraponto permite ao ensaísta mexicano lançar luz sobre nossa própria concepção moderna, pós-cristã da morte, conforme explicada no trecho que abre este artigo. Quem não há de concordar que em nosso mundo das mídias sociais a morte como um fato incômodo que deve ser negado e se possível varrido para debaixo do tapete não é ainda pertinente? O reconhecimento da morte resume-se a um post no Facebook ou uma mensagem pelo WhatsApp. A única obrigação da pessoa que recebe a notícia parece ser a de responder com um emoticom apropriado, ou alguns deles, para tornar a mensagem mais enfática, com algumas palavras de consolo e de solidariedade e voilà, a etiqueta dos tempos terá sido seguida à risca. Aquela obrigação social de acompanhar os familiares do defunto nos rituais fúnebres, o velório, o enterro, a missa de sétimo dia, é um incômodo totalmente desnecessário e a epidemia de Covid-19 forneceu a qualquer um a desculpa suficiente e epidemiologicamente correta para não comparecer a nenhuma das três cerimônias, para evitar aglomerações e a famigerada contaminação.

    Considerando a reação mundial e individual à pandemia iniciada em dezembro de 2019, as palavras de Octavio Paz são prescientes não só em descrever a morte pós-moderna como um incômodo, mas como algo a ser suprimido qual erva daninha por algum produto da nossa sociedade tecnológica. A comparação da enfermeira do Espírito Santo da vacina CoronaVac com água, devido a sua pouca eficácia, revela a mentalidade de todos nós, a despeito da enxurrada de críticas que ela levou e do julgamento sumário a que a pobre moça foi submetida, típicos das mídias sociais, que a levou a perder o emprego. A supressão do vírus que causa a síndrome respiratória aguda grave virá com um produto excepcional como a vacina produzida pela empresa Pfizer, cuja vacina tem eficácia ao redor de 91%, número este na ponta da língua de qualquer cidadão que checa ao menos uma vez por dia as notícias na internet. É um número bem maior do que o da CoronaVac, cuja eficácia é de pouco mais de 50%.

    Para Nathanna e para todos nós que queremos nos livrar da morte por meio do progresso representado por novos remédios e novas vacinas, é frustrante saber que devido à nossa condição de país pobre não teremos acesso à tecnologia “top” de combate ao corona vírus, qual seja, a do RNA mensageiro, disponível no Primeiro Mundo. Teremos que nos satisfazer com uma vacina com tecnologia ultrapassada que não serve para obtermos a saúde e a cura, apenas para passarmos na alfândega ou na imigração em algum aeroporto estrangeiro e não sermos vergonhosamente barrados.

    E assim caminhamos há exatos 12 meses, bombardeados com fatos desagradáveis: número de mortes por dia causadas pela Covid-19, número de mortes em todo o mundo, ranking dos países com mais mortes em números absolutos, ranking dos países com maior número de mortes per capita, número de mortes em cada Estado brasileiro. Será que os mais de 200.000 óbitos atribuídos ao vírus chinês que tem uma proteína em formato de coroa são sentidos por nós como uma tragédia, algo que nos faz repensar nossa vida, nossa relação com o mundo e com as pessoas, que nos fará elaborar uma nova visão cósmica como tinham os astecas e os cristãos conquistadores do México? Ou será que é um mero fato a ser superado com um produto eficaz que o destrua e o torne coisa do passado, para que sigamos adiante na nossa trilha rumo a novos fatos e novos produtos?

    Cabe a pergunta colocada por Scheler: para onde o progresso nos levará quando tivermos suprimido o evento incômodo que dominou as manchetes em 2020 e continua dominando em 2021? De qualquer forma, nossa sofreguidão em livrarmo-nos da erva daninha e nossa frustração com aqueles que atrapalharam nossa trajetória determinarão muitos desdobramentos políticos no Brasil e no mundo: quem será sacrificado para suprimirmos o vírus letal?

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