Na semana passada, para aqueles que me leram, eu disse que se estivesse inspirada eu falaria sobre a segunda parte da minha viagem. Digo inspiração porque creio que eu cansaria os leitores se fizesse um relato detalhado que só interessaria aos meus amigos. Falar o que eu comi, o que eu vi seria maçante, mesmo porque não fiz nada que fugisse do padrão de turista de primeira viagem. Não sofri nenhum acidente, não conheci ninguém famoso, ninguém falou-me coisas ignorantes sobre o Brasil, mesmo porque oficialmente eu passei por italiana na Europa, para facilitar minha vida. Como o objetivo do Montblattnão é ser um mero blog narcisista, mas um espaço de reflexões alternativas sobre o país, a inspiração para minhas impressões veio hoje depois de ler sobre um dia de caos nos aeroportos. Dessa vez a TAM falhou, mas o fato é que vivemos no limite em termos operacionais e qualquer coisa que dê errado provoca efeitos cascata.
A solução que está sendo proposta para que possamos ter uma infraestrutura decente no Brasil é a privatização por meio de concessões do Poder Público. Como já foi noticiado aqui no Montblatt, em 6 de fevereiro saiu o resultado da licitação de uma parceria público privada com a Infraero para gerir o aeroporto de Guarulhos. Aparentemente o resultado foi um sucesso: a oferta vencedora bateu 16,2 bilhões de reais, 12,8 bilhões de reais a mais do que o mínimo estipulado no edital. Tal valor será pago ao governo em 20 anos em suaves prestações mensais reajustadas pela inflação e além disso o consórcio vencedor terá que dar 10% da receita ao Estado. Não falarei aqui sobre a qualidade desse consórcio, já abordada por nosso editor, ou sobre o fato de os participantes incluírem o fundo de pensão da Petrobrás, o Banco do Brasil e serem financiados pelo BNDES, o que faz da utilização do termo privatização algo meio capicioso.
Falarei dos benefícios que advirão desta PPP. É óbvio que o governo sai ganhando se as prestações forem pagas, é óbvio que o consórcio explorará o aeroporto mais movimentado do país, mas e nós consumidores, onde ficamos nessa? Alguns dirão que teremos serviços melhores e portanto também seremos beneficiados. Sim, muito provalvemente Guarulhos ao menos deixará de ser tão decrépito como atualmente é, mas a que preço? Para que o consórcio possa pagar o valor recorde prometido ao governo e auferir lucros será preciso tirar leite das tetas de nós usuários e por isso preparem-se para aumentos expressivos nos próximos anos nas tarifas portuárias. O quão expressivos dependerá do tipo de regulação e fiscalização a serem exercidas pela ANAC e outros órgãos do governo, as quais por sua vez dependem do estabelecimento dos objetivos do governo: será o de fazer o maior caixa possível para si e para o concessionário às custas dos consumidores, ou tornar o acesso a tal infraestrutura democrático, permitindo que muito mais pessoas possam usufruir de serviços aeroportuários eficientes e a preços razoáveis?
Aqui amarro as duas pontas deste meu relato. Porque se falo do modo como estamos tentando resolver o problema da mais suma imoportância para nossas perspectivas de crescimento é para fazer um contraponto ao meu segundo destino turístico depois da Grécia, a Suíça. Por razões pessoais-sentimentais resolvi conhecer o país dos lagos, das várias línguas, dos cantões, dos referendos, dos bancos. Mas o que me marcou mesmo é que a Confederação Helvética (os helvetii eram um grupo de tribos célticas que habitavam o vale entreos Alpes e o Jura que foram derrotadas pelas tropas de Júlio César) é um país de trens. Eu comprei o Swiss Pass com validade para quatro dias a um preço ao redor de 500 reais e ele me dava direito a quantas viagens eu quisesse incuindo bondes, ônibus e entradas em museus. A vantagem é que uma vez de posse dele bastava mostrá-lo ao fiscal e pronto, não era mais necessário preocupar-se em comprar bilhetes de transporte. Os habitantes do país não tem direito ao Swiss Pass, mas podem comprar uma carteira, pagando mensalmente, que lhes dá direito a número ilimitado de viagens em qualquer meio de transporte por um ano.
Não precisarei aqui mencionar o óbvio, que eram todos muito limpos, modernos, ao contrário dos trens da Itália (muito mais pobrezinhos), e que são irritantemente pontuais. Irritantemente porque se você se atrasa 30 segundos, já era: pode até ver o trem na plataforma, mas quando vai apertar o botão para a porta abrir, ele já terá iniciado o movimento (isso me aconteceu duas vezes). Tudo muito previsível: em um dia de manhã dormi em SaintLouis na França, andei 10 minutos, atravessei a fronteira, peguei o bonde na Basiléia, cheguei à estação, peguei o trem até Visp, passando por Berna, a capital, e de Visp peguei outro trem até Zermatt, onde vi o Matterhorn, o pico mais famoso da Suíça. Andei trezentos quilômetros em um dia. E quando fui à parte italiana, no dia seguinte, cruzei o país do noroeste ao sudeste até chegar a Lugano.
A confiabilidade do sistema permite que os turistas aproveitem seu Swiss Pass até o último tostão, que o indivíduo que more em Berna e trabalhe na Basiléia possa chegar em 1 hora e meia no serviço, que o nativo que deseje passar o dia esquiando possa se divertir, em suma que a vida econômica, cultural e social flua sem atropelos. Em outras palavras, é um patrimônio compartilhado por todos, subsidiado pelo governo para que cada cidadão faça uso dele da maneira que lhe aprouver, para trabalhar, para se divertir, para tratar da saúde.
Será quimera sonhar que no Brasil haja um dia trens que nos livrem do engarrafamento e poluição causados pelos carros? Trens que integrem o país, que permitam o escoamento da produção, que diminuam o famigerado custo Brasil, que torne desenecessário todos se aglomerarem nas grandes cidades. Se pudéssemos nos conscientizar de que a função do Estado é proporcionar bens públicos e não atender grupos de interesse específicos talvez fôssemos capazes de fazer pressão para isso.