[…] o Brasil era uma sociedade antropófaga. Ele deve voltar a ser antropófago. O gênio da França deve ser buscado em Clóvis, no vaso dos Soissons e nos druidas, o do Brasil se esconde no ventre dos antigos indígenas, no moquém dos tupis sobre os quais eles grelhavam os soldados ou quaisquer missionários holandeses, portugueses e alemães. Até alguns franceses.
Trecho retirado do verbete “Literatura e Antropofagia” sobre o Manifesto Antropofágico lançado em 1928 pelo escritor Oswald de Andrade (1890-1954) em prol de uma produção artística autenticamente brasileira, retirado do livro “Dictionnaire amoureux du Brésil” do escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020)
[…] não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança […]
Em boa e sã consciência tenho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente.
Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de que tem vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair do nosso país, para ver coisas tão monstruosas.
Trechos retirados do livro “Viagem à terra do Brasil” de Jean de Léry (1534-1611) sobre o ritual de antropofagia dos índios tupinambás, que ocupavam a costa do Brasil do atual Ceará ao Rio Grande do Sul
Prezados leitores, na semana passada mostrei como Gilles Lapouge tenta explicar o Brasil aos seus conterrâneos franceses estabelecendo semelhanças e diferenças com acontecimentos aqui e acolá. No trecho que abre estre artigo, Lapouge defende a ideia de que se a essência do caráter dos franceses deve ser buscada na figura do rei Clóvis (481-511), que foi o primeiro monarca a unir as tribos dos francos e converter-se ao catolicismo, o caráter dos brasileiros deve ser buscado nas nossas raízes indígenas, particularmente nos índios Tupinambás, que comiam carne humana de maneira ritualística. Nesta semana, o objetivo é mostrar um outro olhar francês sobre o nosso país, o de Jean de Léry, que partiu para o Brasil em novembro de 1556 para habitar a colônia francesa fundada no Rio de Janeiro por Nicolas de Villegagnon (1510-1571), a chamada França Antártica, que existiu de 1555 a 1570.
Lery era protestante e ficou oito meses na colônia, mas foi expulso com outros compatriotas da mesma religião, acusados de heresia por Villegagnon. Ele ainda ficou mais dois meses na região da Baía de Guanabara, vivendo com os tupinambás e depois da volta à Europa, em maio de 1558, acaba estabelecendo-se em Genebra e escreve “Viagem à Terra do Brasil”. Ao contrário de Lapouge, um homem letrado do século XX que se vale de seus conhecimentos sobre literatura, pintura e música para entender o país, Léry adota como ponto de vista para descrever os indígenas com quem ele conviveu os princípios da religião reformada, que pregava valores morais austeros, uma vida livre de vícios, de paixões, de vaidade, de luxúria, mas ao contrário, imbuída dos valores da castidade, da fidelidade, do comportamento regrado que agradasse a Deus. Três exemplos ilustrarão este ponto.
O primeiro deles é a respeito do ritual antropofágico dos tupinambás, que Léry apresenta no capítulo XV de sua obra. Os prisioneiros de guerra são engordados, recebem uma mulher para lhes fazer companhia durante o período de engorda e depois são mortos com um golpe na nuca ou na testa. O corpo é então esquartejado e as partes colocadas em uma grelha de madeira, o moquém (daí a origem da nossa moqueca), para ser defumadas e ficar prontas para o consumo. Comer o inimigo não é só um ato de vingança, que para os indígenas é a única justiça possível. É também uma homenagem a ele, tanto que os tupinambás esfregavam o sangue dos prisioneiros mortos e moqueados nos filhos, para que estes adquirissem a valentia daqueles.
Conforme mostra o trecho citado na abertura deste artigo, para Léry o ritual adquire uma conotação mais benevolente quando ele compara o sofrimento rápido proporcionado pelo golpe mortal dado pelos tupinambás com o sofrimento lento infligido pelos agiotas europeus àqueles a quem emprestavam dinheiro e que mantinham na miséria pela cobrança de juros escorchantes. Nesse sentido, se a antropofagia é algo que chama a atenção dos homens civilizados pela flagrante barbárie do ato, o olhar de um homem de fé como Lery, que recebeu o título de burguês em Genebra em 1560, relativiza a crueldade considerando o comportamento dos que na Europa viviam à custa do trabalho alheio, o que não era o caso da burguesia calvinista genebrina.
Um segundo exemplo do código moral protestante determinando a visão de Léry sobre os habitantes originais do Brasil encontra-se no capítulo VIII, que descreve a indumentária dos homens e mulheres tupinambás. O nudismo prevalente para ele não é motivo para escandalizar-se e considerá-los pecaminosos por exporem suas partes pudendas. Ao contrário, a simplicidade do vestuário contrasta com o luxo dos europeus, que se esmeravam em usar roupas inúteis, cujo objetivo era atrair a admiração de todos e despertar a lascívia e a luxúria em alguns. Nesse sentido, a nudez indígena torna-se sinônimo de pudor, de recato, de decência, ao passo que todos os enfeites que as mulheres europeias usam, as golas, as rendas, os postiços, os cabelos encrespados e tal despertam muito mais as paixões sexuais.
Por fim, é importante mencionar a observação que Léry faz no capítulo XII sobre a estranheza e o desprezo que causavam nos autóctones o comportamento avaro dos europeus, que cá vinham, atravessando o mar, sofrendo grandes incômodos, em busca de pau-brasil e riquezas. Para os tupinambás, essa ênfase no acúmulo era inconcebível porque consideravam que a natureza e a terra proveriam sempre às necessidades suas e de seus familiares. Daí porque detestavam os piratas vindos da Europa, movidos pela pura cobiça e afã de acumular. Novamente aqui Léry coloca-se ao lado dos indígenas, ou melhor, do retrato por ele pintado sobre os valores morais dos indígenas, pois à luz dos seus princípios protestantes, aqueles que se dizem cristãos, mas angariam riquezas muito além do que precisam para sobreviver, pelo mero deleite que o dinheiro causa, sem intenção de estabelecer-se na terra que estavam saqueando, eram simplesmente avarentos, “espuma do mar”, “gente sem país”, “homens sem descanso”. Um burguês como Léry preferia trabalhar de modo honesto, para sustentar sua família com o fruto dos seus esforços, assim como os tupinambás faziam nas terras brasileiras, cultivando a terra e caçando de acordo com o que precisavam.
Prezados leitores, neste ponto cabe a pergunta: “Viagem à terra do Brasil” é uma descrição dos costumes e da visão de mundo dos povos com que Jean Léry conviveu na Baía de Guanabara ou simplesmente uma oportunidade a um membro da religião reformada de lançar um manifesto em defesa dos valores protestantes, que ele em certa medida projeta nos autóctones com que tem contato na América? Nunca saberemos, pois nunca teremos de novo a oportunidade de encontrarmos os habitantes originais do Brasil litorâneo, tal como eram, antes do contato com os europeus.
De qualquer forma, à luz da descrição que Léry faz do que viu nos trópicos, a exortação de Mário de Andrade, citado por Gilles Lapouge no seu verbete sobre o Movimento Antropofágico do Modernismo brasileiro torna-se mais fácil de ser entendida. O Brasil deve se servir do ritual dos antigos tupinambás para encontrar seu caminho espiritual e cultural: deglutir o estrangeiro para adquirir-lhe as qualidades, mas nunca se esquecendo que ele é o inimigo.