Jonathan Sumption, até recentemente um juiz na Suprema Corte, dedicou suas recentes palestras no rádio, patrocinadas pela BBC, ao declínio da política e à ascensão do direito, argumentando que as ações judiciais são agora simplesmente a política por outros meios. Aqueles que se saem perdedores no processo político (incluindo até ex primeiros-ministros, que deveriam agir melhor) estão cada vez mais dispostos a recorrer à justiça para conseguir uma vantagem política. Ou para impor às autoridades políticas e ao povo sua visão do que deveria ser feito.
Trecho retirado do artigo “Quem governa – tribunais superpoderosos são ruins para a democracia” escrito por Richard Ekins, professor de direito da Universidade de Oxford e publicado em 21 de setembro de 2019
‘O que quer que a rainha promulgue no parlamento é a lei’ é uma expressão adequada da regra sobre a competência jurídica do Parlamento sendo aceita como o critério final para a identificação do que é o direito…
Trecho retirado do livro “O Conceito do Direito” de Herbert Lionel Adolphus Hart, filósofo do direito britânico (1907-1992)
Prezados leitores, assisti a uma entrevista do deputado federal Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre e ele revelou a Marcelo Tas, no programa Provocações, o desejo de fazer uma pós-graduação em Direito Constitucional. De um lado isso é positivo, porque ele sensatamente percebeu que esse assunto tem profundas repercussões no Brasil atual, em que o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Constituição, está nas manchetes dos jornais praticamente todos os dias. De outro lado, é triste que já em seu primeiro ano o cofundador do MBL dê mais prioridade a um assunto técnico que deveria ficar restrito aos operadores do direito em vez de estudar os problemas econômicos, sociais e educacionais do nosso país. Isso é sintomático da doença que acomete nossa democracia e que é compartilhada por uma democracia muito mais antiga e robusta do que a nossa, a do Reino Unido. Explico-me.
Na terra da Rainha Elizabeth prevalecia um direito constitucional extremamente simples, que prescindia da leitura de caudalosos volumes, conforme é o uso aqui no Brasil nas faculdades de ciências jurídicas. A competência para dizer o direito sempre esteve com o Parlamento, considerado desde 1688 como soberano para promulgar leis que passavam a ter validade automática. Desde o governo de Tony Blair (1997-2007), tal sistema tem sido mudado para alinhar o Reino Unido às práticas jurídicas do continente europeu. De acordo com Richard Ekins no artigo citado acima, isso significou dar novos poderes aos tribunais britânicos, aceitar a jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos e promulgar em 1998 a Lei de Direitos Humanos, oferecendo um leque de oportunidades às pessoas entrarem na justiça para demandar direitos que possam se enquadrar no largo conceito de direito humano, conforme definido naquele estatuto. Essa conspurcação do antigo sistema de que o que dizia o Parlamento era a lei foi ainda facilitada pela criação de uma Suprema Corte em 2009 que, embora não tenha o poder de revogar uma lei promulgada pelo Parlamento, pode declará-la incompatível com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a qual serviu de inspiração à lei de 1998.
Os frutos dessa mudança gradativa para um direito constitucional em que o controle final sobre o que é o direito fica a cargo dos juízes de um tribunal constitucional, isto é, para um “judicial review system”, estão sendo colhidos agora com a crise do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, aprovada em 2016 em referendo popular. Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico, havia aconselhado a rainha a suspender o Parlamento, como uma medida que lhe permitisse entrar em acordo com a União Europeia para que o Reino Unido saia do bloco até 31 de outubro, já que o Parlamento negou-se até agora a aprovar todos os acordos de saída já submetidos a sua homologação. Os descontentes com a decisão do primeiro-ministro recorreram à Suprema Corte e em 24 de setembro os 11 juízes consideraram ilegal a suspensão das atividades legislativas o que obrigou Boris Johnson a reformular sua estratégia de saída da EU, ainda incerta. Esses episódios recentes mostram a que ponto chegou a crise constitucional no Reino Unido, o outrora exemplo lapidar de democracia representativa: observando o triângulo amoroso formado pelo primeiro-ministro, pelo Parlamento e pelo Judiciário, não se tem clareza de quem deve tomar as decisões políticas mais importantes, de quem deve dizer qual lei vale no país.
Minha menção às tribulações do Reino Unido, dividido entre Remainders e Leavers, serve para iluminar a crise por que passa o Brasil, em que o Judiciário é acionado constantemente para resolver disputas entre grupos que são incapazes de chegar a um entendimento pelas vias parlamentares. A novela mexicana em torno da prisão em segunda instância é o exemplo mais acabado disso. Para o bem da nossa democracia, que requer a convivência dos diferentes, se o que a maioria do povo deseja é que haja punições mais céleres, o texto da Constituição deveria ser mudado por emenda aprovada no Congresso de maneira a deixar absolutamente claro que a condenação por órgão colegiado já tira a presunção de inocência e portanto permite a prisão. Infelizmente, os arautos da luta contra a corrupção, que incluem os que querem ver Lula longe do poder, como os militares, e os arautos do garantismo em matéria penal, acharam por bem escolher como local das disputas o Supremo Tribunal Federal, encarregado de interpretar o que a Constituição quer dizer.
O resultado é a perda de credibilidade de um órgão que não mais diz o direito de maneira final, mas simplesmente segue o vento da opinião pública e dos acontecimentos que são enfatizados pela mídia, como se sua atuação tivesse que ser política e não jurídica. Se antes prevaleciam nas manchetes as operações espetaculares da Polícia Federal, que levaram os ministros do STF a aceitar a legalidade da prisão na segunda instância, agora reina a dúvida, insuflada pelas revelações do site Intercept Brasil sobre as combinações entre Sérgio Moro e os procuradores federais, e sobre as loucuras de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República de2013 a 2017. Daí que o que é direito no STF desmancha-se no ar e surge novamente sob outro formato, à esquerda ou à direita do que antes era direito. Diante de tal relatividade, não admira que o povo ache que os ministros sejam venais e apenas defendam interesses e não a lei.
Nosso sistema de controle de constitucionalidade foi copiado do sistema americano, cujos defensores alegam que permitiu aos Estados Unidos adaptar um texto escrito sucintamente no século XVIII aos desafios da modernidade. Mas será que nossa Constituição de 1988, de 250 artigos, precisa de tanto preenchimento de lacunas e de tanta adaptação assim? Ou devemos concordar com Richard Ekins, para quem recorrer à justiça para resolver questões constitucionais é solapar a democracia, tornando-a refém de grupos de interesse?
Prezados leitores, confesso não ter uma resposta. No Reino Unido voltar ao antigo sistema de supremacia incondicional do Parlamento é mais fácil, pois as pessoas que fazem política lá ainda tem uma memória de como as coisas funcionavam antes de 1998 e melhor, tem orgulho de sua tradição centenária de discussão parlamentar, registrada nos livros de história. Em nosso Brasil, nossa prática legislativa consiste em sua maior parte em tornar o Congresso um palco de discussões que muitas vezes descambam para a violência verbal e física, pura e simples. O que sei é que enquanto a agenda do país for ditada por filigranas jurídicas discutidas por juízes, nossos deputados e senadores eleitos tornar-se-ão cada vez mais irrelevantes e desacreditados e a nossa democracia de 513 deputados federais e 81 senadores na prática funcionará como uma tecnocracia de 11 Ministros do Supremo Tribunal Federal. Oxalá que um dia Kim Kataguiri termine seus estudos constitucionais e se ainda for deputado, debruce-se sobre algo mais prosaico, como os cerca de 450.000 mosquitos machos geneticamente modificados que foram soltos na cidade de Jacobina na Bahia e que deveriam ter acasalado com as fêmeas nativas e gerado ovos inviáveis, incapazes de transformar-se em adultos, o que diminuiria a população de mosquitos. No dia 10 de setembro de 2019 a revista Nature publicou um artigo alertando sobre a descoberta, um ano após a liberação, que uma parte desses supostos ovos tinham chegado à vida adulta e transmitiram seu material genético para as populações nativas de mosquitos, com efeitos imprevisíveis sobre a transmissão de doenças como a febre amarela, a dengue, a zika e a chicungunha ( mais informações em https://www.dw.com/en/genetically-modified-mosquitoes-breed-in-brazil/a-50414340, o site com o artigo das revista Nature está inacessível no momento em que escrevo).